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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Faxina

Saí da minha casa no extremo leste da cidade para faxinar a kitnet onde passo a semana durante o ano letivo, perto da USP. Atravesso a cidade.
Perto de chegar, me lembro que não peguei a chave da kit, e fico mui chateada pelo tempo e dinheiro perdido, e pela faxina que haveria de esperar. Desmoralizada e sentindo-se uma criança por esquecer algo tão básico, tomo meu caminho de volta. Penso em como preciso tomar jeito na vida: uma mulher de 21 anos que esquece as chaves de casa! E as reflexões sobre quando vou me formar, conseguir um bom emprego, ser motivo de orgulho para os pais, os planos de ser atriz, eles têm qualquer chance de dar certo?, o capitalismo que cada vez nos dá menos espaço para vivermos plenos e felizes, as coisas que eu poderia tentar fazer para ter a cabeça mais na Terra do que em outros planetas (ioga, talvez), o pequeno consolo de que ao menos usei as tantas horas no metrô para ler um bom livro..., fazem uma nuvem em volta de minha cabeça junto com as nuvens da chuva fina que tornavam a tarde ainda pior.
A imagem do fracasso: sentada num ponto de ônibus numa tarde chuvosa, sofrendo de sua incurável cabeça de vento e refletindo os rumos de seu futuro incerto, uma jovem mulher de 21 anos chora.
Eu retorno. No meio desse caminho de volta, contudo, Acaso, o Inexplicável, me faz meter as mãos num misterioso e esquecido bolso de minha mochila. Franzo o cenho, a vida em câmera lenta: a chave.
#vaiterfaxina


Poema noturno

De todas as coisas que te posso dar
- uma carta de amor, uma serenata, um livro com poemas -
te dou esta:

já levaste meu sono
te dou então minha madrugada.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Carta de amor a uma amiga

À Marina.

(Descrever aquela que amo - em geral começam assim, essas cartas.)

O cuidado, a vida e o gosto amoroso pelo mundo. Espreme das coisas, das mulheres e dos homens mesmo que seja seu nadinha que há de belo, o pouquinho que seja que Deus deu pra todos. A sensibilidade, assim, nas minúcias, que nasce em seu peito e sua inteligência - que lhes são grandes, grandes como a maior coisa que existe.

Salguei o ombro de suas camisas com minhas tristezas.

Eu te daria um oceano, não dos meus choros, mas de ondas violentas e ressaca, e grandes campos de girassóis. Roubaria uma estrela brilhante para te fazer um amuleto da sorte em forma de pingente! Faria uma estátua destas que somos nós para o topo das montanhas mostrarem aos turistas nossos dias de felicidade.

Com amor, desses fortes de dezembro!

De sua amiga,
Giu

Da intimidade

A intimidade não se adentra como se adentra um quarto. Ela é uma névoa, um veneno que se respira e traga, como a fumaça dos cigarros que entonteia os fumantes e amantes de ocasião. Não existe o segredo para tragá-la. A intimidade é uma atmosfera: sujeita ao incontrolável passeio dos ventos.

Desconhecíamos portanto o segredo para que eu tragasse seu íntimo. Um quarto limpo, de tacos brilhantes de madeira, cheiro de habitado. Não é qualquer terreno.

Eu me encanto com a vista dos prédios. Vertigino com as alturas, e as janelas iguais e repetidas dos edifícios vizinhos, alucino com eles caindo sobre mim. Amo a vista dos prédios porque me dão felicidade, e felicidade é quando me misturo com o mundo.

"Posso abrir?", e abri. Sofri o espanto da brisa, das alturas, dos prédios vizinhos à noite. Me desculpei por amar as coisas poucas, como uma tonta.
"Eu amo essa janela."
"O verde?", era verde, a janela.
"Sim... e esse modelo italiano."
"Italiano? Até onde eu sei, se chama veneziana esse modelo de janela."
"Pois então..."
"Ah! Veneza!"

Nos beijamos à beira da janela. Suas mãos e a brisa da noite me lamberam as costas. Me ofereceu um copo d'água, me mostrou suas músicas, me despiu com beijos e carinho, me puxou os cabelos, amou minha beleza.

Meus pulmões saíram intactos na manhã brilhante do dia seguinte. Que coisa... ao menos assim não se adoece.





terça-feira, 9 de junho de 2015

Das cartas que nunca serão entregues

Oi. Sinto que te devo respostas. Não devo por uma relação moral das mulheres com o mundo que nos cerca e comprime – se fosse por isso, não deveria meia palavra – mas pela relação minha contigo, desse nadinha que construímos. Estou angustiada por não termos trocado dez minutos de conversa, e nem acho que isso seria difícil... tem a ver comigo, sou fechada e me sinto perdida. Aí não conversamos, só trocamos meia dúzia de frases. Eu mentiria se dissesse que essas poucas frases eram pouco férteis, porque não eram: eu que não sei regar... perco o timing e a coisa nunca desabrocha. Digo isso porque você me interessa. Mas, querido, que desencontrado foi o nosso tempo. Eu havia sido abandonada há três meses, minha vida virou uma grande desordem. Te encontrei sem querer numa mesa de bar, mas te encontrei, encontrei mesmo, porque fui consciente, fui até você, e no fundo você me interessa.

Acho que boas coisas aconteceriam de nós. Acho isso com sinceridade. E veja, quando digo boas, não digo grandes: digo boas. Ou... talvez eu só veja potência naquilo que sei que não pode acontecer. Se pudesse, eu acho que não veria futuro algum, porque sou do tipo que aciona o tempo todo a auto-sabotagem, pra no fim caminhar assim: sozinha...

Me resolvi com meu trauma há exatos oito dias. Na verdade, eu me resolvi, mas não sei se ele se resolveu comigo. Antes disso, eu estava tentando me dar uma chance de reordenar minha vida, dura de intranqüila. Te encontrei no meio do caminho. Acho que nunca encontrei de verdade, porque você estava com muito sono naquele dia. Mas poderia e até queria ter encontrado.

Você me interessa. Quando as pessoas falam em “interesse”, a coisa em geral soa mesquinha, mas não é desse interesse que estou falando: é do interesse que faz apertar os olhos pra saber o que mais existe por trás. Você me interessa. Mas tenho um trauma na vida. Tenho também um mundo dessas todas possibilidades, você incluso, que nem sonho em ser trauma ainda, mas opto por ficar com o que é seguro, que é na verdade muito e completamente inseguro, disso que tenho comigo, que voltou para minha vida há oito dias, e que amo, e quero, e sou. Conto os dias assim nos dedos para te provar de algum jeito como esse nosso tempo dói de tão desencontrado.

Eu não escrevo para casos como o nosso. Nunca escrevi. Que me fez parar para despejar esses parágrafos? O que sinto é algo diferente, portanto? Por que para você devo respostas, e para outros nunca devi? Não sei, não sei, não sei. Escrevo isso pelas coisas boas que aconteceriam de nós. Não digo grandes, longas, de gravar história e de se erguer estátuas no topo das montanhas, mas digo boas, talvez só de lembrar e rir e sorrir. Arrisco que já temos algumas.

Isso é mais uma das cartas que jamais serão entregues. Jamais é muito tempo: talvez jamais mesmo, mas também talvez vai-que. Não entrego porque na minha cabeça, na cabeça das mulheres – e não por nossa culpa –, a coisa é sempre maior do que é, ou pra vocês que sempre é menor do que é. Você riria com seus amigos. Por isso, apesar de ter essa dívida, não vou quitá-la, e não peço desculpas porque seriam mentirosas. Se fosse entregar, não escreveria isso tudo, seria falsamente despretensioso e dissimulado e apequenado, só é assim bonito porque não vai chegar às suas mãos – e por isso sim peço desculpas, a você por minha mesquinhez e a mim por todas as chances que não me dou.

Escrevo isso porque o mundo é mau e as boas coisas merecem tempo e carinho.












sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Metamorfose

Texto escrito em dezembro de 2011, a um amigo por quem eu, muito provavelmente - lendo esse texto três anos depois e distante das névoas da adolescência - devia ser apaixonada. Feliz por ter encontrado isso nas profundezas do computador...
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Acabo de descobrir a maior das metamorfoses.

Era um daqueles momentos em que se fala sem pensar – aliás, pensa-fala, sem a segura e prudente mediação entre uma coisa e outra –, e nele acabei afirmando que você (devo escrever a você ou deixo a pieguice para um texto que de fato lhe for chegar às mãos?) era uma das melhores partes da minha vida, e é bem verdade. São aquelas conversas com amantes amáveis em que a gente revela (e descobre) nossas paixões, no prazer de dividi-las e de se gabar de nossas vidas nessa área generosas. Você (a você então) é mesmo uma das melhores partes da minha vida.
            
Eu gosto de finais. Eu os imagino o tempo todo, gosto de supor o que vai me atingir, seja desespero ou amor ou nostalgia precoce ou indiferença (sendo esta última uma previsão bem rara, porque não projeto finais, senão por mero acidente, com pessoas que vão me causar só um vazio insosso, e isso não tem a menor graça). Mas, acima de tudo, gosto de pensar no que vou dizer. Confesso que meus finais sobre você foram os que me tomaram mais tempo, o que eu tinha parar dizer era interminável. Eu via filmes, música, livros, poesia – arte em você, mal sabia como terminar, tampouco começar; só havia palavras jogadas, desconexas e, necessariamente, destinadas aos seus ouvidos, e nada mais. Elas nasciam em mim para que terminassem em você, sem discussão.
            
Mas eu sei o que acontece; é o que, como disse, acabei de descobrir. Você vai viver a sua vida, eu, a minha, e não vamos mais dividi-las, porque aquela história de “vou até onde precisar para te ver” não passará de mero simbolismo, bobice sincera dita em ardor de momento. Nós vamos nos ver dia ou outro, os assuntos que não terminavam vão terminar e vamos acabar guardando para si um ou outro acontecimento, porque na hora dá-se sempre um jeito de esquecer o pacto de que entre nós não haveria segredos. Seremos mera obrigação de aniversário, um e-mail, um cartão; depois nem isso. Não vou mais te ver, numa noite vou olhar nossas fotos e vou chorar de saudades, tentando entender por que, no momento em que chegou nosso fim de fato, as palavras, aquelas que me tomaram tanto tempo, não couberam na minha boca ou pareciam não caber nos seus ouvidos – justo elas, nascidas em mim para que morressem em você, agora mais jogadas e desconexas que nunca, órfãs. Vou revirar minhas memórias procurando o exato momento e o que nele aconteceu que fez com que elas parecessem tão impróprias, vou procurar e não vou achar. Vou querer saber por que você, de melhor parte de vida, era agora uma foto. Vou tentar sem remédio lembrar quando a metamorfose aconteceu; como? Não vou lembrar sequer quando te vi pela última vez – não me lembro agora.
            
Você será uma foto, junto a outras fotos dos meus amiguinhos da pré-escola de quem eu tanto gostava e cujos nomes há muito me fugiram. Vai ser foto, tampa de garrafa, bilhete de cinema, ou uma frase que você repetia muito e que o traz à minha mente, ou um lugar a que íamos com frequência ou no qual só estive com você. Se um dia te quis para sempre, em outro pouco farei para que seja mais que a foto que se encontra quando se faz arrumação das gavetas da cômoda. Vou te dizer tudo isso num momento aleatório, daqui a um ou dois anos, por carta ou mensagem de celular, e, seja lá qual for sua resposta, ela só vai confirmar esse final alternativo que estou projetando agora, tão certeiro. “Lembra quando a gente... e que pena que agora...”.

E é assim que você vai morrer, morrer para o mundo: no mesmo segundo em que morrer a última pessoa que souber vê-lo nesses objetos e frases e lugares nos quais você se tornou. Aí a foto vai ser foto, a tampa vai ser tampa, bilhete vai ser bilhete, tal como Caeiro nos disse sobre as pedras que não são além de pedras. (Acredito que essa última pessoa será eu, e espero que seja – vai ser como se morrêssemos juntos.)