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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

As mais caras galinhas do mundo


"Uma pessoa que tem casa mas não tem horta... pra mim, não é gente, não!"
"Eu achei que era o desconto da galinha!"
"Coloca esse dinheiro aqui que eu jogo no meio da rua."



           Um homem adentrou a loja a passos firmes e, como se soassem trombetas, caminhou dignamente até o balcão. O velhote dono do bazar o recebeu com o resto de solicitude que pôde salvar de seus muitos anos de comércio e reconheceu-o numa surpresa feliz como um vizinho de longa data, que, contudo, jamais havia postos os pés na loja. Toda a dignidade de sua grande entrada desvaneceu com seus dizeres seguintes e trêmulos, que cozinharam em sua garganta por muito tempo antes de saírem cuspidos.
                – Vim quitar uma dívida.
            Dois riscos se juntaram às muitas rugas da testa velha do comerciante, numa reação àquela fala muito inesperada, até que a história, há muito tida como resolvida, revisitasse suas lembranças enquanto era explicada numa severa economia de palavras pelo homem à sua frente. Os riscos sumiram, o velho riu sincero como há tempos não fazia e, tirando da boca o palito mastigado, balançou a cabeça e disse que não: aquela dívida já estava paga.


         Cerca de trinta anos mais novo do que naquela tarde de chuviscos, quando as ruas ainda eram de terra e quando ainda prometiam que a estrada São Paulo-Rio seria alargada, seu Pascoal, num meio-dia de domingo, que é dia santo, como dizem os mandamentos, não abriu o bazar (que já existia naqueles tempos, logo abaixo da casa da família) e anunciou à mulher Maria e às três filhas que aquele seria um bom dia para comer um ensopado da galinha velha que morava com uma companheira no poleiro dos fundos da casa.
Moravam num bairro residencial acolhedor, daqueles em que as pessoas se cumprimentam ao abrir janelas, trocam doces caseiros em noites de festa e botam os filhos pequenos para brincar juntos no quintal (que acabavam, quando adultos, cumprimentando os antigos colegas de longas tardes com um aceno de cabeça e um sorrisinho corrido: o destino das amizades precoces). A casa à sua direita era de uma moça de meia-idade, Márcia, que a cada manhã dava bom-dias mais cansados aos parapeitos vizinhos, e mãe de dois filhos de pai morto: morto porque Márcia aprenderia, depois da ida sem volta do marido para sabe-se lá onde, a inventar a morte das pessoas e a promover esquecimentos sem dor. Os filhos, Roberto e Osmar, de oito e dez anos, sabiam com certeza que o pai estava bastante vivo, obrigado, mas Márcia sabia do contrário com a mesma certeza. Do outro lado morava o sargento Juvenal, de humores enrijecidos pela vida militar e ainda mais por ter se aposentado sem conseguir ascender às patentes superiores, dono de um pequeno terreno vazio ao lado esquerdo da família de Maria e Pascoal. Morava logo depois do terreno de que era proprietário, num sobrado simples mas sempre nos trinques. A filha mais velha do casal de comerciantes, com doze anos na época em que a história aconteceu, gostava de especular o que aquele sargento, que tão bem sabia se postar com imponência, fazia quando estava em casa, pois a única coisa que comprava no bazar da família eram alguns centímetros de fita de cetim. A menina adorava incomodar o sono noturno das irmãs mais novas, que só podiam temer um homem que não se via esboçar sorriso, com histórias de que ele usava a fita para presentear crianças, dizendo que iria amarrá-la no pescoço das coitadas como um colarzinho, mas acabava por esganá-las sem dó.
– Então a gente não deveria vender essas coisas pra ele – a caçula, astuta, retrucou, ao que a mais velha respondeu que, se recusasse a venda, ele desconfiaria e faria dela a próxima vitima. Mas ela mesmo achava que o sargento não sorria porque não tinha dentes, e ele amarrava a fita no dedo indicador na hora de dormir, para que, quando acordasse, lembrasse de botar as dentaduras para não passar vergonha caso um ataque de riso o acometesse. (Maria, a mãe, numa noite, indo fechar a janela do quarto, viu numa grande mesa de mogno o sargento Juvenal trocando as velhas fitas de cetim das suas caras medalhas dos tempos militares por fitas novas que comprava em sua loja, mas morreu com essa informação, pois não é um fato que se guarde com muitas chaves na cabeça; mas sabia também que a mulher do sargento o chamava de Juva, e essa manifestação de carinho tão banal fez com que deixasse de vê-lo como um homem tão durão. Guardou esta informação também.)
Acontece que Maria e Pascoal há três anos ambicionavam em comprar o terreno do lado esquerdo da casa, propriedade do sargento, para ampliar um pouco as capacidades do bazar, que prosperava. Ter conseguido a quantia necessária para comprá-lo foi a conquista da semana, e tal era o motivo para festejar o domingo com um ensopado de frango.
– Pois pegue a coitada enquanto afio a faca – Maria pediu, tirando da última gaveta o facão que a havia feito aprender na marra queira-ou-não-queira que bicho não tem alma.
Pascoal foi buscar. Voltou quase ao mesmo tempo que foi.
– A danada não está lá.
– Tem duas. Pois pegue a outra.
– Não tem mais.
Foram averiguar os arredores da casa. Não poderiam ter ido muito longe: ontem mesmo estavam onde sempre estiveram botando seus ovos. O galinheiro era cercado por um arame, pouco alto, é verdade, mas suficiente pra não deixar as gatunas escaparem: galinha faz alvoroço, mas não levanta voo, disso tinha certeza. Pascoal ficou pensando se elas pressentiram a vinda do ensopado da morte e se conseguiram algum poder extraordinário de fuga, desses que aparecem nos momentos de provação e intempérie, mas depois que perguntou pras filhas, que brincavam saltitantes de amarelinha no quintal com o menino Roberto e Osmar, filhos de pai morto, se tinham eventualmente visto por aí duas galinhas perambulando, e depois de olhar embaixo das camas, dentro dos armários e todo possível canto da casa e do bazar, descartou de vez a ideia de que elas escaparam. Aquilo era irremediavelmente um caso de ladrão de galinha.
– Podia ter deixado a outra! Pra comemorar o dia em que comprássemos o terreno, ao menos.
O pai se conformou de pronto, mas Maria, por sua vez, obstinou-se na busca; já ia mandar os moleques, filhos de pai morto e da vizinha, direto pra casa, pois  não era mais hora de brincadeira, mas o menino, que conhecia a mãe das colegas de longas tardes, pressentiu o perigo e já tinha partido para casa com o irmão. Mas, como suas raivas passavam tão rápidas quanto chegavam, logo estavam todos jantando um ensopado de legumes que cultivavam na horta dos fundos (que, no fim das contas, sempre recebera mais atenção do que qualquer outro serviço de Pascoal, que era da opinião de que uma pessoa que não tinha horta em casa não era gente).
Ao entardecer da segunda-feira, dia seguinte ao sumiço das galinhas, Pascoal viu algo que abalou as estruturas da certeza que tinha sobre a compra do terreno. Era fim do expediente, as portas do bazar já tinham sido fechadas, Maria subira para banhar as meninas. Pascoal baixava as portas da loja, que dava de frente para a rua e dividia paredes com o terreno (que dividia paredes com a casa do sargento), quando viu, na caçamba de lixo do velho militar, um monte de penas. Parou. Olhou para os lados, a rua estava praticamente vazia, os comércios fechados, as crianças encardidas de empinar pipa e pular amarelinha já estavam em suas casas de banho tomado... e ele resolveu se aproximar, averiguar melhor e ter certeza de que não era truque de seus olhos, ilusão de ótica ou golpe de vista. Espichou o olho para dentro da caçamba e não havia dúvidas: uma porção de penas da mesma cor das galinhas; o sargento as roubara, e o cheiro de ensopado de frango era inegável àquela hora, mas jamais soube se, naquele momento, seu nariz o estava enganando ou se alguém estava se empanturrando com suas galinhas de fato.
Homem ponderado que era, pensava duas vezes antes de agir. Imaginou-se indo até o sargento tirar satisfações sobre aquelas penas todas e dizendo que, coincidentemente, suas galinhas haviam desaparecido, de um modo bem irônico e desafiador. Contudo, era do tipo que descartava essas ideias ao mesmo tempo que as formulava, pois sabia que não teria coragem de peitá-lo daquela maneira, sendo o sargento o homem que era, do tipo que não esboçava sorriso, e homem que não sorri só pode não ter o menor escrúpulo. Sabia também que, se comentasse qualquer coisa com Maria, que nunca apareceu em casa com desaforo, a mulher viraria uma leoa e iria até a casa do vizinho com o facão de matar bicho e exigiria os frangos, nem que os levasse vomitados de volta para o galinheiro – o que poderia ser um perigo para ambos. Comprar o terreno já não o animava tanto quanto antes: se o sargento, aposentado militar e consequentemente sem problemas financeiros, roubava um parzinho de galinhas, nada garantia que os trâmites da compra se dariam na legalidade com que costumava levar sua vida, ou que o sargento não lhe passaria a perna de alguma forma. Entretanto, desistir da compra sem uma boa explicação não satisfaria a mulher, então, decidiu: voltaria para casa fingindo que aquelas penas na caçamba não tinham sido vistas, e fim.  
Poucos dias depois, ainda na mesma semana, o casal foi junto manifestar ao sargento o desejo de comprar o terreno. Sabiam que a Jesuíta da Nova São Miguel também estava deveras interessada, mas sabiam também que preferência se dá sempre pro vizinho, e reclamaram ao sargento essa prioridade. Juvenal prioridade não dava, mas dava desconto.
– Faço 180 pra ela, 120 pra vocês.
Pascoal de pronto só pode interpretar aquele desconto estonteante como um irremediável peso na consciência pelo roubo das galinhas. Fecharam negócio com um aperto de mãos e um olhar cúmplice de quem entende a negociação, que, para Pascoal, era claramente mais que um sinal de preferência ao vizinho e sim um acerto de contas, tácito para sempre porém muito bem selado.
“Caras, essas galinhas, não?” é o que pensaria pelos próximos trinta anos, até aquela tarde de chuviscos, em que as ruas já eram de asfalto e a estrada São Paulo-Rio mudara o nome para Avenida Marechal Tito e jamais seria alargada, quando o homem caminhou para seu balcão para quitar uma dívida. O sargento Juvenal, Juva para a mulher, e falecido há uns bons anos, era o culpado até as parcas palavras de Roberto, filho de pai morto, quase a completar a quarta década de vida, explicarem que, sim, o ladrão daquele par de galinhas era ele, porque a mãe Márcia, que inventara muitas mortes até a sua própria, pedira pra ir catá-las na calada da noite porque faltava comida na mesa; agora que podia, gostaria de pagar a dívida, certamente uma quantia menor que o desconto concedido a Pascoal pelo sargento, e de tirar o peso de trinta anos da consciência junto com as notas que tirava do bolso. Pascoal recusou, obviamente, e Maria também, ao se achegar na conversa dos dois, pois as dívidas dos famintos são do tipo que se quita ao mesmo tempo que se contrai. Roberto insistiu.
– Coloca esse dinheiro aqui que eu jogo no meio da rua – Maria disse, sendo aquela a maior verdade que diria na vida.
Se a quantia foi parar no meio da rua ou não, não se sabe, ou quanto tempo durou aquela conversa, mas o sargento descansou em paz finalmente (se é que militares têm paz depois de mortos), Pascoal diria aos netos anos adiante que aquilo era história de cinema e Roberto tirou enfim o repetido pedido de perdão de suas rezas.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Canela


Teu cheiro me chegou.
Ah, memória: de precisa vira avessa;
em crise, coitada, desvira.

É-se mais pelas narinas
(como canela).

E que ela,
pelos muitos cantos de meus viveres inteiros,
se espalhe mesmo, sem pudores ou reservas,
e que eu,
em cada um deles,
– ao sol, sempre –
possa me sentar,
fechar os olhos
e te respirar 
enfim.

sábado, 14 de julho de 2012

Janelas


JANELAS, por Helena Zelic

JOAO
UM HOMEM NORMAL
LIA JORNAL
MAS SO AS MANCHETES

JOAO
JOGOU TUDO PRO ALTO
NUM SALTO SAIU
DE SEU MUNDO ABSTRATO
E
   TUDO
                 VIROU
                            POESIA
                                          CONCRETA.


Completei meus dezoito anos no último dia dezesseis. É curiosa a promessa que acompanha a maioridade, neste universo em que vigoram os mitos constitucionais, de que o é aos dezoito, apenas, que a janela para o mundo termina de se abrir para que o explore aquele que tiver a coragem; e que aos dezoito, apenas, é-se dono finalmente exclusivo de si para buscar seja lá o que for. (Lamentemos com sinceridade por aqueles que creem em lendas tais: para que o mundo estivesse aberto e para que se fosse dono de si, bastou-se nascer; o mundo está aí e promete continuar aí por tempos e tempos.)

Sem surpresas, fazer dezoito anos não mudou nada, exceto uma bobice ou outra que agora eu posso fazer sem recorrer a pequenos trâmites da ilegalidade. Ganhei um precioso presente (em termos físicos e concretos, porque a noite foi tão linda que eu a considero como um) e eu não esperava ou queria nada relacionado ao meu novo status de adulta, como garrafas de vodca, carros, vales-motel, entre outras coisas que, neste mesmo universo em que vigoram outros muitos mitos, dão a ilusão de que a vida só começa com elas. Passei uma noite fria e junina com fogueira, pinhão e gente querida, a partir de quem o mundo tem se revelado com mais verdade.

(Esses parágrafos prévios não são apenas uma impressão sobre a maioridade que registro aos adultos próximos que os lerão talvez; são pequena introdução para um fato curioso, com um tiquinho de lirismo lá no fundo, para os que acreditam nessas coisas.)

Voltou da bonita noite, dentro da mochila, um livrinho todo feito (escrito, diagramado, desenhado, recortado, dobrado, amarrado e entregue) com o esmero e afinco próprios da querida tão querida Helena; lacrado com nó de barbante, tem a capa com – que os deuses do design perdoem as próximas palavras – umas bolas coloridas, laranjas, amarelas, roxinhas e rosas, sobrepostas, com umas tiras cinzas cruzando-as horizontalmente, me lembra um pouco uma zebra; tudo tem uma marca d’água de ramos de flores e o título do livro vem numa bola branca jogada para a direita: se mínimo.

Sentei com minha mãe å mesa de café da manhã de domingo tomado ao meio dia e exibi meu presente, com a honra de quem possui o exemplar da primeira tiragem artesanal do que um dia será impresso aos milhões para que não falte poesia para ninguém. Lemos inteiro, passando as folhinhas uma a uma, ora sem dizer nada, ora com um comentário risonho ou admirado, ora separando os preferidos para poder reler depois com mais cuidado. Na semana seguinte, minha mãe apareceu com um pedacinho de papel usado para rabiscos de conversas telefônicas, em cujo verso escreveu quatro linhas humildes que me mostrou feliz, dizendo tê-las criado devido a uma onda de inspiração vinda dos escritos da Helena, o que configurou prova genuína e inconteste das capacidades salvadoras da literatura.


Antes de conhecê-la e de sermos amigas – adoro me lembrar disso –, lia seus poemas e me admirava ver que tão jovem criatura já tivesse pinceladas de escrita própria em suas aventuras literárias. O tempo que passei nos Tempos de Morangos me deu a sensação de que conhecia previamente uma pontinha de Helena; hoje vejo que uma tarde com ela e o não-sei-o-quê que um de seus poemas causa são tão parecidos que não se pode mesmo dissociar a arte do artista. Pensei rapidamente que neste texto faltaria falar um pouco mais de sua pessoa, mas divagar sobre suas borbolet(r)as já o faz.

se mínimo fala de janelas, janelas muitas, e fala do mundo e fala de versos. E daí me lembro dos meus recentes dezoito anos: nenhuma lei federal que me considera adulta abriu ou descobriu o resto do mundo para mim. Levei, contudo, na minha mochila, uma janela em forma de versos a partir dos quais poderia ver um mundo de novos parapeitos, da maneira com que prometiam as expectativas sobre maioridade nas quais nunca cri. Recebi um impulso novo para transformar (verbo intransitivo) em poesia concreta. Achei curiosa a coincidência, e feliz.

Ontem Helena me disse que chorou pelos tempos de seca poética pelos quais passava e pelo medo de um futuro medíocre. Não sou capaz de livrá-la desse medo; gostaria de saber como para livrar-me também. Mas borboletas amarelas são perseguidoras incessantes; se ontem mesmo saudamos Gabito por seus escritos destemidos sobre amores contrariados e estirpes condenadas, no futuro saudarão Helena e seu gosto por aliterações, janelas, versos, vírgulas, os infindos quê-mais que as procedem e seu gosto pelo mundo, sobretudo, amado no gerúndio. Eu já a saúdo.

Elejo meu preferido (daqueles que arrebatam sem muitos porquês):


EM BOCA FECHADA
NAO ENTRA
em todo seu céu da boca
tinha três milhões de estrelas
você fria se calava
só pra eu não poder vê-las.


Em leiga análise, me tocam a sofisticação da rima, dessas preciosas mesmo, a justeza e a precisão da imagem, de tamanhas sensibilidade e minúcia, e, por fim, por aquilo que serve a “arte dos pacientes” (e todas as outras artes) no fim das contas: pela busca e habilidade incansáveis de trazer lirismo e grandeza a eventos tão miúdos, mínimos, de um jeito que me acende a vontade de vivê-los – proeza essa que só alcançam os gênios obstinados.


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(A quem se interessar!)



sábado, 21 de abril de 2012

Fumaça

Alguém lhe bateu à porta e era sua avó. Sequer notou, de tonta estarrecida, que a velha pouco ou nada reagiu àquele momento de suspensão em que Lúcia fora tacada para fora da vida e jogada de volta nela ao reconhecer que aquela figura enrugada e inerte era sua avó. Era toda olhos; os olhos de bola de gude saltavam brilhantes envoltos em dobras milimétricas e muitas, num inchaço vermelho que os tantos anos posteriores à briga terrível haveriam de acentuar sem remédio. Lúcia foi impulsiva para um abraço que acabou hesitante e desajeitado, tamanho era o medo de amassar toda aquela miudeza de menina pré-púbere encapada de velhice. Mal respondeu ao toque. Cheirava a laranjas, como sempre, só que o tempo as havia mofado, e assim era de se esperar; isso confirmou o já confirmado, porque é o que cheiro de dias e pessoas passadas faz mesmo. Lúcia disse que seus olhos eram iguais aos que se lembrava de criança, há vinte anos, ao que a velha respondeu sincera depois de um gole de ar e coragem que nunca tinha visto olho que mudava. Lúcia só pode concordar.
A avó era da Itália e não voltara ao país de origem desde que pisou em terras brasileiras. (Perderam-se os laços familiares entre elas antes de Lúcia ser capaz de se questionar se ela desejava ou não voltar; ninguém imagina que a própria velha não se permitiu tais anseios ou sequer pensou em permitir-se, nem que pessoa alguma faria isso por ela). Quando era menina pequena que não sabe das coisas, a avó achara bonito aquelas pessoas todas fugindo de medo dos tempos de guerra e indo para a América, onde, diziam, dava para fazer vida; ela mesma só foi depois de década, fugindo de medo de se arrepender para sempre por não ter ido, como tanto queria, quando o motivo era irrefutável; não achando pretexto bom, deixou aos que ficavam pretexto nenhum. Escolheu o Brasil e chegou nele com algumas liras economizadas, um tanto de comida, mil palavras em italiano e nenhuma em português. Aquelas liras acabaram por salvar sua vida, pois foram, no momento em que tentava comprar um doce de um padeiro que, naturalmente, não queria saber de moeda italiana em terra brasileira, o motivo para Carlos ter o que dizer à mocinha que observava esfomeado desde que ela entrara no recinto. “De nada servem esses trocados, moça. Aqui se compra com cruzeiro”, disse com bafo de tabaco, tirando-a daquela gesticulação agoniada de pessoa que não fala a língua do lugar e ganhando o coração e estômago desamparados da jovem ao pagar e entregar-lhe o doce, com a firmeza que o tornaria duro e controlador pelos cinquenta anos seguintes. Compreendeu, através daqueles olhos de bola de gude brilhantes e saltados, que a moça bonita não tinha para onde ir depois que limpasse o açúcar dos cantos da boca, que continuava faminta de tudo e perdida na comunicação verbal e na vida. Carlos decidiu que ela deixaria de ser de si mesma para ser sua mulher.

Ela se entregou. Foram de Carlos o beijo, o suspiro, o choro, a palavra em português, o andar de mãos dadas, o despir das vestes, a transa medrosa, o gemido sonoro, a saudade: todos estreantes na vida da moça, todos de amor. Deu-se por completo e, se alguém no mundo se preocupasse com isso, se perguntaria se ela poderia ter feito diferente. Mas não fez: fez exatamente assim, tomando-se de suas próprias mãos e jogando-se aos ventos para que Carlos guardasse, tanto fazia onde e como.

Carlos foi daqueles que subiram na vida, dono dessas historias que fazem parecer que tem lugar no topo para todo mundo. Começou peão e terminou empregador de até cem homens e moleques em obra de construção civil. Quando botou a namorada em sua cama e casa modestas, decidiu que merecia coisa melhor para abrigar sua nova vida de homem comprometido com moça boa. Pagou o que tinha de maior qualidade em mão-de-obra e bom braço e ergueu a casa mais bonita da região, para entrar e sair dela para passeios e missas de domingo com seu cigarro de tabaco numa mão e sua mulher na outra. Os dias que se seguiram ao momento tardio em que ela saltou de vez de menina para mulher foram de ciúmes e brigas, até que os passeios de domingo foram se reduzindo a ponto de não aconteceram mais; ela saía de casa, sendo assim, para a missa e apenas a missa, onde não havia homens que lhe dirigissem olhares de cobiça. Mas as missas acabaram por se extinguir também, depois de um fatídico e terrível incidente.

Trouxe consigo da Itália o ofício da costura que o longo tempo ocioso dentro de casa aperfeiçoou, depois que ganhou do marido uma máquina de pedal para que arrumasse camisas velhas. A ciumeira de Carlos acendeu nela vaidade, e ela fez para si um vestido com mangas curtas e decote de renda, no qual se enfiou e foi à missa de domingo. Prometia ser como todas as outras missas até que o silêncio sepulcral que segue a homilia foi quebrado pelos duros passos de Carlos, que a arrancou de seus joelhos e rezas pelo braço e a levou para casa sem dizer palavra. Arrastou-a em silêncio por todo o caminho, enquanto ela esboçava perguntas num italiano tremido. Largou-a só quando entraram no quarto. Ela esperou olhando-o em pé com olhos arregalados e frio na barriga. Ele andou até ela, em respiração irregular, posicionou o rosto rente ao da mulher, emanando um calor enfurecido, e observou suas vestes. Seus dedos calejados de erguer tijolo e queimados de sol percorreram os braços branquinhos e desnudos dela, dos pulsos aos ombros, até chegar ao pescoço e colo farto. Agarrou as golas rendadas do vestido e rasgou-o em todo e qualquer ponto, frenético, louco, babando feito um cão, deixando-a nua em sua frente a ponto de mijar-se de medo. “Não precisa mais rezar na igreja porque Deus te ouve aqui”, disse deixando o quarto, a partir do que ela aprendeu, com o tempo, a fazer-se ouvir por Deus em casa mesmo (não achava de bom tom que impusesse ou questionasse qualquer coisa a quem lhe avisou que no Brasil não se comprava com liras e sim com cruzeiros).

O único filho veio e as três filhas do filho também, tendo passado todos eles pelos cuidados da mãe e avó que vagava pela casa buscando cantos para varrer e furos em camisas para fechar. A cisão da família começou quando o filho ainda jovem amassou o carro querido de Carlos numa noite de sexta-feira, dando início a um desprezo mútuo por um pai que não aceitava desculpas e cobrava o dinheiro do conserto e por um filho com orgulho ferido e desempregado. Desamassou-se o carro, trocaram por um novo e depois de um tempo por outro, mas o dinheiro do conserto jamais foi pago ou esquecido com o passar dos anos, e Lúcia, a mais velha das três netas, cresceu com o fantasma dessa dívida deslizando pelos almoços em família até se instalar em todo canto da casa. Ele vinha arrastar suas correntes ruidosas sempre que emergiam assuntos monetários ou ligados a dinheiro por um fio; era o “dinheiro que seu pai me deve” ou “que seu filho me deve”, dependendo do interlocutor, desde a velha avó à moleca de dois anos que só tinha contato com dinheiro quando engolia moedas achando que eram balas. Esse espectro só deixou de rondar depois da briga terrível, quando nem era lembrado mais por que ele existia e só se sentia sua presença, já condicionada aos corpos e mentes e almoços de todos. No dia em que Carlos viu o filho devedor fumando um cigarro de seu tabaco precioso, desencadeou-se uma discussão que nasceu do tabaco, passou pela dívida e terminou em veias saltadas, gritos endemoniados e a tal cisão irremediável e total, que só não se deu antes porque uma linha milagrosa ainda sustentava essa relação tão inconsistente que ruiu com o acender de um cigarro.

Lúcia, com sete anos na época, assistiu assustada àquele momento memorável de sua vida tendo vaga consciência do que a expulsão de seu pai com toda a família daquela casa significava para seus destinos já pouco promissores. (Como, neste universo, vigora a lei de que, escolhida uma alternativa, aniquilam-se de imediato todas as outras, ninguém nunca saberia se este foi o melhor ou o pior caminho para aquele pequeno núcleo familiar assombrado. Para a avó, não é dúvida, ver o único filho, nora e netas deixando a casa para sempre sem ter a chance de revogar a situação fora terrível, terrível, mas aquele tipo de existência que levava a havia ensinado a aceitar com resignação as privações da vida.) A neta pouco se lembra do dia da partida além do carregar de malas e caixas com talheres e panelas para fora da casa onde crescera e que não era a mais bonita da região como antes. Lembrava do cheiro de laranjas da avó que sentiu ao dar-lhe um beijo de tchau e dos olhos saltados e brilhantes, não suspeitando jamais que aquilo era brilho de choro engasgado que não desengasgaria por anos e anos. Contrariou o pai e decidiu que se despediria do avô, mas o máximo que conseguiu foi um aceno do velho no fundo do longo corredor escuro que unia a sala de estar aos quartos. Disse-lhe um adeus tímido, ao que seu avô acenou e depois adentrou o quatro com andar rude de pernas já riscadas de varizes e com resmungo ininteligível de boca mais preocupada em segurar o cigarro de tabaco, enrolado e selado a cuspe com capricho. Tragou fundo que as bochechas entraram no rosto, formando sulcos cadavéricos sob as olheiras, a pontinha do cigarro acendeu, laranja, vagalúmica, e o velho fechou a porta só deixando rastro de fumaça, e Lúcia não o veria mais até o fim da vida e ou ouviria dele até vinte anos depois, quando alguém lhe batia à porta e era sua avó.

***

Rememorou-se a história durante o caminho entre a porta de entrada e as cadeiras onde avó e neta agora se sentavam.
– Seu avô morreu. Teve ataque do coração ontem cedo.

A velha varria dez minutos de chão diariamente, tendo eles um dia sido suficientes para limpar as folhas do quintal todo e hoje servindo apenas para chegar até a metade. Nunca passava de dez minutos e, na altura do sétimo, observava todos os dias ser aberto o vitrô do banheiro, por onde saía o denso vapor dos banhos quentes matinais de Carlos. Gostava de ver como aquela fumaceira virava gotícula de água ao tocar o vidro frio e pingava no chão que havia acabado de varrer. Ao fim do décimo minuto, Carlos saía para o quintal para cuidar de suas mudas de plantas, mas, naquele dia, a água não pingou no chão varrido e ele não saiu. O ataque do coração o deixou secando o pé direito carcomido de frieiras antes que pudesse chegar ao esquerdo, pentear os últimos fios brancos, abotoar poucos botões da camisa e ir cuidar das plantas.

A avó anunciou o horário do enterro e, com outro gole de ar e coragem, disse que havia algo mais. Esse algo mais era, como Lúcia notara na tensão com que ela preparava o terreno, mais importante que a morte do marido ou que os vinte anos passados sem ver sombra da neta ou que toda aquela história, cujo fim bem resolvido, ela sabia, se encontrava dobrado em quatro em sua bolsinha de moedas.
– Me deixou esse bilhetinho aqui. Sabia que ia morrer e me deixou esse bilhetinho – disse, estendendo à neta uma tira de papel com meia dúzia de palavras. – Nunca me deixou recado, assim, escrito, que até esqueceu que não sei ler. Sei nem italiano, imagine ler coisa em brasileiro – desabafou com o sotaque carregado que cinquenta anos de Brasil não haviam tirado. – Ele sabia que ia morrer e me escreveu isso, tava na minha cômoda, deixou lá à noite, precisava me dizer alguma coisa, mas não sei ler. Que diz aí?
Lúcia leu. Retomou o olhar ansioso dela, que sofria as dores da viuvez, do amor, da saudade e da curiosidade. Decifrar o papel era vital. Releu cinco, seis vezes mais, não sabendo o que dizer.
– Que é que diz?! – ela insistiu.
A neta não respondeu.
– Lê pra sua vó, pelo amor de Deus.
De uma só vez, disse:
– Diz aqui: “O vestido estava lindo. Amo imaginá-la dentro dele outra vez.” Entendeu, vó? Ele gostou do vestido. Se lembra daquele vestido? Então, era lindo. O vô amava muito a senhora.

Ela tomou o papel de volta para si e aquele choro engasgado de anos saiu. Compreendeu enfim as letras “NÃO ESQUECE DE COMPRAR MEU TABACO” e com elas relembrou do vestido destruído e vestiu-se dele mentalmente, vaidosa outra vez, feliz, e assim Lúcia percebeu que a avó sonharia com seu vestido todas as noites até a morte, pois leria e releria antes de dormir seu único escrito de amor.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Diálogos aritméticos

O menino de amor todo avoado
esquece até como se soma,
vai desistir de modo algum
e diz que diz que não desdiz
que um mais um ainda é um.


Falei pra ele “não, menino,
quando aprendi aritmética,
juntei banana mais banana,
e um mais um, certeza, é dois,
esquece que a mim não engana.”


Respondeu de pronto “não,
pode somar suas bananas,
que somo eu e minha metade
o resultado é sempre um
ou vai dizer que não é verdade?”


Disse-lhe “ei, que conta estranha!
não foi assim que eu aprendi,
sei que um mais um é dois.
Mas se tá tão apaixonado
dê logo nome aos bois.”


Respondeu bobo “É Maria,
Maria José, tal é sua graça
Maria José Silva Pereira
ela é minha e toda minha!,
usa até flor na cabeleira!”


Disse “mas como ‘sua e toda sua’?
Quando se está de namorico
- seja Maria ou José o tal amante -
Maria não é de Maria
seja antes ou depois e até durante?”


“Mas com a gente a coisa muda!
Ela é meu anjo precioso
e eu sou anjo de Maria!
Agora é um o que era dois
e vê se deixa de teimosia.”


Tempo passou e logo veio,
tristonho de tudo, de cara molhada
“Menino, que há, por que chora?”
Respirou, titubeou e respondeu cuspido
“É Maria, que me deixou e foi embora.


Foi, dos meus dias, os mais lindos
mas hoje em dia só me dói.
Dei flor, amor e dei poema.
Bem que podia ser pra sempre
que nem romance de cinema!”


“Menino, o amor de vocês foi bonito,
mas amor acaba, é bem sabido.
O que foi uma só vida agora é meia e meia.
Vai deixar erro bobo de aritmética
te fazer ser só a metade a vida inteira?”


1 bj à Luisa Caron