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sábado, 21 de abril de 2012

Fumaça

Alguém lhe bateu à porta e era sua avó. Sequer notou, de tonta estarrecida, que a velha pouco ou nada reagiu àquele momento de suspensão em que Lúcia fora tacada para fora da vida e jogada de volta nela ao reconhecer que aquela figura enrugada e inerte era sua avó. Era toda olhos; os olhos de bola de gude saltavam brilhantes envoltos em dobras milimétricas e muitas, num inchaço vermelho que os tantos anos posteriores à briga terrível haveriam de acentuar sem remédio. Lúcia foi impulsiva para um abraço que acabou hesitante e desajeitado, tamanho era o medo de amassar toda aquela miudeza de menina pré-púbere encapada de velhice. Mal respondeu ao toque. Cheirava a laranjas, como sempre, só que o tempo as havia mofado, e assim era de se esperar; isso confirmou o já confirmado, porque é o que cheiro de dias e pessoas passadas faz mesmo. Lúcia disse que seus olhos eram iguais aos que se lembrava de criança, há vinte anos, ao que a velha respondeu sincera depois de um gole de ar e coragem que nunca tinha visto olho que mudava. Lúcia só pode concordar.
A avó era da Itália e não voltara ao país de origem desde que pisou em terras brasileiras. (Perderam-se os laços familiares entre elas antes de Lúcia ser capaz de se questionar se ela desejava ou não voltar; ninguém imagina que a própria velha não se permitiu tais anseios ou sequer pensou em permitir-se, nem que pessoa alguma faria isso por ela). Quando era menina pequena que não sabe das coisas, a avó achara bonito aquelas pessoas todas fugindo de medo dos tempos de guerra e indo para a América, onde, diziam, dava para fazer vida; ela mesma só foi depois de década, fugindo de medo de se arrepender para sempre por não ter ido, como tanto queria, quando o motivo era irrefutável; não achando pretexto bom, deixou aos que ficavam pretexto nenhum. Escolheu o Brasil e chegou nele com algumas liras economizadas, um tanto de comida, mil palavras em italiano e nenhuma em português. Aquelas liras acabaram por salvar sua vida, pois foram, no momento em que tentava comprar um doce de um padeiro que, naturalmente, não queria saber de moeda italiana em terra brasileira, o motivo para Carlos ter o que dizer à mocinha que observava esfomeado desde que ela entrara no recinto. “De nada servem esses trocados, moça. Aqui se compra com cruzeiro”, disse com bafo de tabaco, tirando-a daquela gesticulação agoniada de pessoa que não fala a língua do lugar e ganhando o coração e estômago desamparados da jovem ao pagar e entregar-lhe o doce, com a firmeza que o tornaria duro e controlador pelos cinquenta anos seguintes. Compreendeu, através daqueles olhos de bola de gude brilhantes e saltados, que a moça bonita não tinha para onde ir depois que limpasse o açúcar dos cantos da boca, que continuava faminta de tudo e perdida na comunicação verbal e na vida. Carlos decidiu que ela deixaria de ser de si mesma para ser sua mulher.

Ela se entregou. Foram de Carlos o beijo, o suspiro, o choro, a palavra em português, o andar de mãos dadas, o despir das vestes, a transa medrosa, o gemido sonoro, a saudade: todos estreantes na vida da moça, todos de amor. Deu-se por completo e, se alguém no mundo se preocupasse com isso, se perguntaria se ela poderia ter feito diferente. Mas não fez: fez exatamente assim, tomando-se de suas próprias mãos e jogando-se aos ventos para que Carlos guardasse, tanto fazia onde e como.

Carlos foi daqueles que subiram na vida, dono dessas historias que fazem parecer que tem lugar no topo para todo mundo. Começou peão e terminou empregador de até cem homens e moleques em obra de construção civil. Quando botou a namorada em sua cama e casa modestas, decidiu que merecia coisa melhor para abrigar sua nova vida de homem comprometido com moça boa. Pagou o que tinha de maior qualidade em mão-de-obra e bom braço e ergueu a casa mais bonita da região, para entrar e sair dela para passeios e missas de domingo com seu cigarro de tabaco numa mão e sua mulher na outra. Os dias que se seguiram ao momento tardio em que ela saltou de vez de menina para mulher foram de ciúmes e brigas, até que os passeios de domingo foram se reduzindo a ponto de não aconteceram mais; ela saía de casa, sendo assim, para a missa e apenas a missa, onde não havia homens que lhe dirigissem olhares de cobiça. Mas as missas acabaram por se extinguir também, depois de um fatídico e terrível incidente.

Trouxe consigo da Itália o ofício da costura que o longo tempo ocioso dentro de casa aperfeiçoou, depois que ganhou do marido uma máquina de pedal para que arrumasse camisas velhas. A ciumeira de Carlos acendeu nela vaidade, e ela fez para si um vestido com mangas curtas e decote de renda, no qual se enfiou e foi à missa de domingo. Prometia ser como todas as outras missas até que o silêncio sepulcral que segue a homilia foi quebrado pelos duros passos de Carlos, que a arrancou de seus joelhos e rezas pelo braço e a levou para casa sem dizer palavra. Arrastou-a em silêncio por todo o caminho, enquanto ela esboçava perguntas num italiano tremido. Largou-a só quando entraram no quarto. Ela esperou olhando-o em pé com olhos arregalados e frio na barriga. Ele andou até ela, em respiração irregular, posicionou o rosto rente ao da mulher, emanando um calor enfurecido, e observou suas vestes. Seus dedos calejados de erguer tijolo e queimados de sol percorreram os braços branquinhos e desnudos dela, dos pulsos aos ombros, até chegar ao pescoço e colo farto. Agarrou as golas rendadas do vestido e rasgou-o em todo e qualquer ponto, frenético, louco, babando feito um cão, deixando-a nua em sua frente a ponto de mijar-se de medo. “Não precisa mais rezar na igreja porque Deus te ouve aqui”, disse deixando o quarto, a partir do que ela aprendeu, com o tempo, a fazer-se ouvir por Deus em casa mesmo (não achava de bom tom que impusesse ou questionasse qualquer coisa a quem lhe avisou que no Brasil não se comprava com liras e sim com cruzeiros).

O único filho veio e as três filhas do filho também, tendo passado todos eles pelos cuidados da mãe e avó que vagava pela casa buscando cantos para varrer e furos em camisas para fechar. A cisão da família começou quando o filho ainda jovem amassou o carro querido de Carlos numa noite de sexta-feira, dando início a um desprezo mútuo por um pai que não aceitava desculpas e cobrava o dinheiro do conserto e por um filho com orgulho ferido e desempregado. Desamassou-se o carro, trocaram por um novo e depois de um tempo por outro, mas o dinheiro do conserto jamais foi pago ou esquecido com o passar dos anos, e Lúcia, a mais velha das três netas, cresceu com o fantasma dessa dívida deslizando pelos almoços em família até se instalar em todo canto da casa. Ele vinha arrastar suas correntes ruidosas sempre que emergiam assuntos monetários ou ligados a dinheiro por um fio; era o “dinheiro que seu pai me deve” ou “que seu filho me deve”, dependendo do interlocutor, desde a velha avó à moleca de dois anos que só tinha contato com dinheiro quando engolia moedas achando que eram balas. Esse espectro só deixou de rondar depois da briga terrível, quando nem era lembrado mais por que ele existia e só se sentia sua presença, já condicionada aos corpos e mentes e almoços de todos. No dia em que Carlos viu o filho devedor fumando um cigarro de seu tabaco precioso, desencadeou-se uma discussão que nasceu do tabaco, passou pela dívida e terminou em veias saltadas, gritos endemoniados e a tal cisão irremediável e total, que só não se deu antes porque uma linha milagrosa ainda sustentava essa relação tão inconsistente que ruiu com o acender de um cigarro.

Lúcia, com sete anos na época, assistiu assustada àquele momento memorável de sua vida tendo vaga consciência do que a expulsão de seu pai com toda a família daquela casa significava para seus destinos já pouco promissores. (Como, neste universo, vigora a lei de que, escolhida uma alternativa, aniquilam-se de imediato todas as outras, ninguém nunca saberia se este foi o melhor ou o pior caminho para aquele pequeno núcleo familiar assombrado. Para a avó, não é dúvida, ver o único filho, nora e netas deixando a casa para sempre sem ter a chance de revogar a situação fora terrível, terrível, mas aquele tipo de existência que levava a havia ensinado a aceitar com resignação as privações da vida.) A neta pouco se lembra do dia da partida além do carregar de malas e caixas com talheres e panelas para fora da casa onde crescera e que não era a mais bonita da região como antes. Lembrava do cheiro de laranjas da avó que sentiu ao dar-lhe um beijo de tchau e dos olhos saltados e brilhantes, não suspeitando jamais que aquilo era brilho de choro engasgado que não desengasgaria por anos e anos. Contrariou o pai e decidiu que se despediria do avô, mas o máximo que conseguiu foi um aceno do velho no fundo do longo corredor escuro que unia a sala de estar aos quartos. Disse-lhe um adeus tímido, ao que seu avô acenou e depois adentrou o quatro com andar rude de pernas já riscadas de varizes e com resmungo ininteligível de boca mais preocupada em segurar o cigarro de tabaco, enrolado e selado a cuspe com capricho. Tragou fundo que as bochechas entraram no rosto, formando sulcos cadavéricos sob as olheiras, a pontinha do cigarro acendeu, laranja, vagalúmica, e o velho fechou a porta só deixando rastro de fumaça, e Lúcia não o veria mais até o fim da vida e ou ouviria dele até vinte anos depois, quando alguém lhe batia à porta e era sua avó.

***

Rememorou-se a história durante o caminho entre a porta de entrada e as cadeiras onde avó e neta agora se sentavam.
– Seu avô morreu. Teve ataque do coração ontem cedo.

A velha varria dez minutos de chão diariamente, tendo eles um dia sido suficientes para limpar as folhas do quintal todo e hoje servindo apenas para chegar até a metade. Nunca passava de dez minutos e, na altura do sétimo, observava todos os dias ser aberto o vitrô do banheiro, por onde saía o denso vapor dos banhos quentes matinais de Carlos. Gostava de ver como aquela fumaceira virava gotícula de água ao tocar o vidro frio e pingava no chão que havia acabado de varrer. Ao fim do décimo minuto, Carlos saía para o quintal para cuidar de suas mudas de plantas, mas, naquele dia, a água não pingou no chão varrido e ele não saiu. O ataque do coração o deixou secando o pé direito carcomido de frieiras antes que pudesse chegar ao esquerdo, pentear os últimos fios brancos, abotoar poucos botões da camisa e ir cuidar das plantas.

A avó anunciou o horário do enterro e, com outro gole de ar e coragem, disse que havia algo mais. Esse algo mais era, como Lúcia notara na tensão com que ela preparava o terreno, mais importante que a morte do marido ou que os vinte anos passados sem ver sombra da neta ou que toda aquela história, cujo fim bem resolvido, ela sabia, se encontrava dobrado em quatro em sua bolsinha de moedas.
– Me deixou esse bilhetinho aqui. Sabia que ia morrer e me deixou esse bilhetinho – disse, estendendo à neta uma tira de papel com meia dúzia de palavras. – Nunca me deixou recado, assim, escrito, que até esqueceu que não sei ler. Sei nem italiano, imagine ler coisa em brasileiro – desabafou com o sotaque carregado que cinquenta anos de Brasil não haviam tirado. – Ele sabia que ia morrer e me escreveu isso, tava na minha cômoda, deixou lá à noite, precisava me dizer alguma coisa, mas não sei ler. Que diz aí?
Lúcia leu. Retomou o olhar ansioso dela, que sofria as dores da viuvez, do amor, da saudade e da curiosidade. Decifrar o papel era vital. Releu cinco, seis vezes mais, não sabendo o que dizer.
– Que é que diz?! – ela insistiu.
A neta não respondeu.
– Lê pra sua vó, pelo amor de Deus.
De uma só vez, disse:
– Diz aqui: “O vestido estava lindo. Amo imaginá-la dentro dele outra vez.” Entendeu, vó? Ele gostou do vestido. Se lembra daquele vestido? Então, era lindo. O vô amava muito a senhora.

Ela tomou o papel de volta para si e aquele choro engasgado de anos saiu. Compreendeu enfim as letras “NÃO ESQUECE DE COMPRAR MEU TABACO” e com elas relembrou do vestido destruído e vestiu-se dele mentalmente, vaidosa outra vez, feliz, e assim Lúcia percebeu que a avó sonharia com seu vestido todas as noites até a morte, pois leria e releria antes de dormir seu único escrito de amor.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Diálogos aritméticos

O menino de amor todo avoado
esquece até como se soma,
vai desistir de modo algum
e diz que diz que não desdiz
que um mais um ainda é um.


Falei pra ele “não, menino,
quando aprendi aritmética,
juntei banana mais banana,
e um mais um, certeza, é dois,
esquece que a mim não engana.”


Respondeu de pronto “não,
pode somar suas bananas,
que somo eu e minha metade
o resultado é sempre um
ou vai dizer que não é verdade?”


Disse-lhe “ei, que conta estranha!
não foi assim que eu aprendi,
sei que um mais um é dois.
Mas se tá tão apaixonado
dê logo nome aos bois.”


Respondeu bobo “É Maria,
Maria José, tal é sua graça
Maria José Silva Pereira
ela é minha e toda minha!,
usa até flor na cabeleira!”


Disse “mas como ‘sua e toda sua’?
Quando se está de namorico
- seja Maria ou José o tal amante -
Maria não é de Maria
seja antes ou depois e até durante?”


“Mas com a gente a coisa muda!
Ela é meu anjo precioso
e eu sou anjo de Maria!
Agora é um o que era dois
e vê se deixa de teimosia.”


Tempo passou e logo veio,
tristonho de tudo, de cara molhada
“Menino, que há, por que chora?”
Respirou, titubeou e respondeu cuspido
“É Maria, que me deixou e foi embora.


Foi, dos meus dias, os mais lindos
mas hoje em dia só me dói.
Dei flor, amor e dei poema.
Bem que podia ser pra sempre
que nem romance de cinema!”


“Menino, o amor de vocês foi bonito,
mas amor acaba, é bem sabido.
O que foi uma só vida agora é meia e meia.
Vai deixar erro bobo de aritmética
te fazer ser só a metade a vida inteira?”


1 bj à Luisa Caron