Páginas

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

As Borboletas Amarelas de Mauricio Babilonia

Você disse que quase ouvia
ouvia as valsas
as Valsas Tristes de Pietro Crespi.
Aí quase vi
vi as borboletas
as Borboletas Amarelas de Mauricio Babilonia
que, no seu rastro,
de tão perto e de tão suas,
vêm me cantar sussurros ternários
das suas verdades e mentiras
das suas coisas que mal sei.

(As borboletas não são
seus sussurros não são
além do quase
quase nuvem
de fascínio amarela;
te perseguem incessantes.
E eu não sou
além do quase
quase tudo e qualquer coisa,
não sou além do olhar atento
a persegui-las à distância
em silêncio.)

_______

1 bj às "Sad Waltzes of Pietro Crespi" e 2 às estirpes condenadas a cem anos de solidão.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Babacas

Por que as pessoas não conversam? É a enésima vez que me pergunto isso e poderia estar questionando em voz alta para pelo menos uminha das sete – agora oito – pessoas – nove – que estão comigo nessa sala de cinema silenciosa, quase nada iluminada e perfeita para um papo. Esperamos Melancolia começar.
É curioso como essa novidade de cadeiras numeradas dá uma disposição estranha aos espectadores: pois, veja bem, duplas e trios de desconhecidos são forçados, pelo mero acaso da escolha quase às escuras dos assentos, a se sentar lado a lado; e nem a força mágica da batalha naval das poltronas de cinema nos faz conversar (uma jovem acaba de se sentar na F2, ao lado do moçoilo da F3, que muito bem poderia ser H4 ou H6. Eu havia atirado na H5: água! Aproveita então, moça, e conversa!).
Por que as pessoas não conversam? É um mistério deveras. Ninguém tem o que fazer enquanto o filme não começa e, entre nós, não há distância maior que algumas poltronas. Falamos a mesma língua, moramos na mesma cidade, provavelmente há um gosto parecido para cinema; logo, podemos discorrer horas a fio sobre novos acordos ortográficos, normas gramaticais, menas e seje; o metrô, os carros, a crackolândia, as fábricas, a poluição, cof cof cof, e os impostos; Fellini, Trouffaut, Almodóvar, Woody Allen e Pânico 4; ah, quanta coisa!, podemos viajar desde o mundo da música clássica até sabores de geleia, e depois voltar aos acordos ortográficos, porque era “geléia” e, quando leio agora, eu penso em “gelêia”, você não?, pois eu sim. Podemos falar também sobre cuecas de algodão, se preferir, ou touradas espanholas ou quem sabe o dólar e a Bovespa, eu não entendo muito disso, não, viu, mas juro que faço um esforcinho. Só não falo de religião, porque eu falo do meu pacto com o vermelhinho e as pessoas perguntam o que os comunistas têm a ver com isso.
Por que continuamos calados?
Minha língua está coçando, doida para uma conversa metalinguística: que tal uma conversa sobre a conversa? Sobre a ausência de conversa, melhor dizendo.
- Por que as pessoas não conversam? – perguntei-lhes, no meu ensaio mental.
Mas há um obstáculo, aquela barreira imaginária, que, somada à coceira na língua, resulta no tamborilar de pés e mãos e numa inquietação incômoda em que vão para nossa balança moral, de um lado, o medo de te acharem maluca e inconveniente e, do outro, a busca do que é que haveria de tão mal num simples bláblá sobre bláblá. E, claro, dezenas e dezenas de ensaios mentais, de formulações de respostas hipotéticas de seu interlocutor, de devos ou nãodevos, ufa!, que, no fundo, usamos só para adiar a tomada de decisão:
- Por que as pessoas não conversam?
E isso lá precisa de ensaio?!
Essa profundíssima questão filosófica se torna profundissíssima quando começamos a pensar nas possibilidades: conversar ou não conversar, a leveza ou o peso! Dois caminhos antagônicos e exclusivos que seguem a lógica de toda escolha: escolhendo uma possibilidade, aniquilam-se imediatamente todas as outras. Isso me assusta, a você não?, pois a mim sim. Coisa sartreana. Não se sabe qual é a melhor delas, façam suas apostas! Saberíamos se pudéssemos viver a vida de novo infinitas vezes, só para podermos escolher as possibilidades aniquiladas, retornando eternamente. Coisa nietzscheana. Profundissississímo!
Meus ensaios continuaram e o filme começou, terminou e eles não passaram de ensaios, principalmente porque Melancolia é tão tarja preta que a gente sai do cinema corcunda, cogitando tragédias e morrendo de letargia; quem quer conversar grogue? Você sim?, pois eu não. Talvez sim se o assunto for amor, sobre o qual tenho muitos minutos para falar, mesmo que já tivesse tido horas. Ou nomes de cores de esmalte, que é um assunto que não aparece todo o dia. Ou se alguém me fizer a pergunta que não quer calar, para eu responder que as pessoas não o fazem porque são babacas. Inclusive eu.

domingo, 7 de agosto de 2011

Sítio

- Não marquem nada que nesse domingo vai ter sítio.
E era dia de sítio. De novo. Sítio era o lugar onde se reunía a parentada materna italiana, com direito a gordinhos de bochecha rosada, boca suja de macarronada com almôndegas falando alto "MANDJÁRE!". Sempre que se anunciava que tal dia ia ter Sítio, pai, filho e filha esboçavam as seguintes reações (sujeitas aos humores do momento): a irônica - Uhul! Maravilha! Já tava com saudade do padre! - e a revoltada - Puta merda, de novo?, e, num sussurro de cúmplice, além dos ouvidos da mãe, A gente já foi esse ano, não foi?.
- O nonno gosta de ver todo mundo reunido, ele fica feliz - e essa era a resolução final e irremediável.
Mas nesse domingo era um Sítio especial: era dia de festa da Madonna, a Nossa Senhora das Neves. Puta merda, a festa da Madonna. Nem era tão especial, porque tinha festa da Madonna todos os anos e em todos eles aconteciam as mesmas coisas.
Ao chegarmos, dessa vez, minha mãe já distribuiu entre os filhos e sobrinhos a tarefa de filmar a missa, a procissão e etecétera e tal; afinal, eram tempos de tecnologia e ela queria mandar as imagens pra Itália.
- Pega as fotos antigas e muda a data que eles vão saber direitinho o que acontece na festa da Madonna – muito bem observou o tio Marcos. Fiquei pensando nisso. Era verdade. Com exceção das cabeças agora algodoadas das pessoas e de um ou outro zio que tinha comprado a tal viagem sem volta de encontro à Nostra Signora della Neve, tudo igual. Quis saber do meu pai o que havia mudado.
- Tá vendo aquela goiabeira ali? Antes, ela era pequenininha.
A graça do Sítio era falar mal e rir do Sítio. Era um lugar bacana até, espaço grande, cheio de grama, árvores, um campinho de futebol, um salão para dançar, uma fazendinha com porcos e galinhas escondida depois da plantação de alface e o maior orgulho, a igrejinha da tradicional missa. Houve tempos de submissão em que nossas mães arrastavam todos os primos para assistir à missa e até levar o pão e as uvinhas para o altar (a gente sempre roubava algumas) – teve aquele dia em que minha mãe anunciou pra todo mundo que eu tinha encarapitado uma coroa na cabeça da mãe do mininujesúis em cima de um caminhão para os católicos da vila e para tiazonas chorosas -, mas agora elas sabem que não tem jeito: a gente chega ao Sítio, senta à mesa do almoço, espera a missa acabar para poder comer até dizer chega e não há o que descole nossas bundas de lá. Mas, como eu disse, hoje tinha que filmar.
Meus primos, meu irmão e eu fomos revezando: ia um, filmava a missa, ia outro, filmava mais a missa, fui eu, filmei a missa. Chegou o momento da procissão.
- Olha lá: tão brigando pra ver quem vai carregar a porra da estátua! Caralho, não dá pra acreditar num negócio desse – e nós ríamos de tudo o que o tio Marcos, desbocado e querendo ir pra casa ver o jogo do Corinthians, dizia sobre o Sítio. De inconformado, reclamava em histeria, alternando em exaltações desacreditadas e deboche de sair lágrimas dos olhos de tanto gargalhar.
- E ainda querem botar o Marquinhos no catequismo. O cacete! Sábado de manhã, “Tá cansado, filhão?, não precisa ir, pó ficar”. Que que é isso! E elas sabem que a Igreja tem um baita dinheirão e fala aquelas bostas de “É mais fácil um rico entrar na agulha...”,“É mais fácil o camelo entrar no céu...”
- “É mais fácil um camelo entrar no buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus”, tio.
- É, o camelo no cu da agulha! E padre pedófilo! Mas lembra daquela vez que você coroou Nossa Senhora no caminhão?
- QUÁ QUÁ QUÁ!
- E você, só porque era a menorzinha, te vestiram de anjinho e te penduraram na merda de um cabo de aço!
- QUÁ QUÁ QUÁ!
(- ISSO É MENTIRA! – disse, com as faces febris.)
- E as veínhas ainda encostavam em você e faziam sinal da cruz, puta que pariu!
- QUÁ QUÁ QUÁ!
E assim todo mundo se divertia, até as mamães e titias fiéis, que davam sorrisinhos de canto de boca, embora tentassem disfarçar com balanços de cabeça em desapontamento.
Mas a procissão havia começado e não se podia perder uma só imagem. Filmaram-se a tal da estátua, as mulheres com vasos de flores na cabeça, o padre, o coral vestido de azul e a bandinha. Ai, a bandinha. A bandinha era composta de uns velhinhos fofos vestidos de soldados de chumbo, tocando, com instrumentos de metal e uns tambores, uma trilha sonora que variava entre o hino do São Paulo e a música tema da novela das oito. Ninguém aguentava mais a bandinha, acho que só eu pelo menos ainda achava graça. Havia também o salão de dança com um casal de cantores e apenas duas senhoras no meio do espaço dançando juntas; a filmadora estava comigo e eu achei aquilo tão baixo-astral que resolvi poupar os italianos de tais cenas.
- Há 21 anos, sua mãe e eu contratamos esses cantores pra animar nosso casamento. Sabe essa música que tá tocando agora? Eles tocaram lá.
Meu irmão e eu sabíamos que nem minha própria mãe teria saco para assistir a todos os vídeos. De fato, não havia novidades.
Pelo menos tinha comida. Macarrão, carnes, legumes de toda espécie, sorvetes, sucos, gelatinas, frutas e, no salão... tanananam!, o tão esperado, feito com toda fé e esmero pelos mais engajados, que sempre vinham no dia anterior ajudar nos preparativos, Bolo da Madonna. E seu inusitado fim começa agora.
Na véspera, eu tinha feito um mousse de limão para enfeitar a mesa de almoço do sítio. A pedido de minha mãe, fui buscá-lo na geladeira da casa. Era tão longe, mas a vontade de comer mousse era maior que a preguiça de trazê-lo. Passei por uma criança aflita que avisava a mãe:
- Mamãe, soltaram os porcos.
- Toda suja! – disse a mamãe, erguendo a criança pelo braço e sacudindo a grama colada em seu bumbum.
Fui buscar o mousse. Entrei na casa, fui até a cozinha, abri a geladeira e peguei a caixa, cheia de moussinhos lindinhos e verdes, chapiscados de tirinhas de casca de limão.
Quando saí da casa, uma palavra: caos.
Ninguém leva criança a sério.
Só tinha porco. Nunca vi tanto porco na minha vida. Ainda bem que eu fui pegar o mousse. Os coitados dos suínos estavam mais apavorados que qualquer um, e todos corriam de um lado pro outro, fosse porco ou fosse gente. Tinha uma porca gigante, ela devia estar prenha, porque as tetas tavam que tavam!, que era seguida de outros três porquinhos famintos. Mas não eram só eles, não, o resto da família-porca tinha sido chamado pra comilança. Os homens da família-gente, depois de um momento de falta de reação, tiveram de fazer alguma coisa.
- Encurrala os bicho!
Foram fechando o cerco ao redor do maior grupo (havia alguns outros espalhados pelo campinho e devia ter na igreja também, porque vi o padre saindo de lá com uma pressa peculiar). Os pobre dos bicho foram ficando assustados de arfar e dilatar pupila, coitados!, e sua rota de fuga incluía o ambiente de almoço. Os danados foram derrubando cadeiras sem medo do amanhã, subiram nas mesas devorando nossas macarronadas com almôndegas, atropelando criança com bumbum sujo de grama, até que os homens resolveram investir. Era uma média de 3 homem/porco. No caso dos porquinhos, 2 lhes pareceram suficientes. Mas que mente brilhante vai imaginar que porco é bicho esperto? Conseguiram expulsar de seus lombos gordos e rosados toda criatura que ousava tentar dominá-los como toureiro. Dava para acreditar? O meu mousse quase que foi abaixo, principalmente quando vi que a nova rota dos porcos era o salão. “Menos mal, só tem os cantores e as senhoras lá”, você pode pensar. Errado.
- O BOLO!
Debandou-se a parentada atrás dos porcos. A macarronada com almôndegas dá pra suportar, mas O Bolo da Madonna já é demais. Mas que cérebro exímio vai imaginar que porco é bicho rápido? Chegaram antes que as senhoras dançantes notassem. Foram com suas cabeçorras e cabeçorrinhas nos pés da mesa d’O Bolo da Madonna, que caiu direto em cima dos porquinhos famintos. E, como se esquecessem que havia uma multidão humana atrás deles, rodearam a piscina de chantili e glacê e fé e esmero que lambuzava o chão, que secou em poucas lambidelas suínas. Pra quem tá acostumado com lavagem, um bolo da madonna não cai nada mal, não é mesmo?
A gente toda estava desolada. Justo O Bolo e seus pedacinhos de papel comestível com foto da Madonna, que tanto haveriam de abençoar seus estômagos?
- Ainda tem mousse, pessoal.
O mousse acabou por consolar as pessoas, de quem todos nós gostávamos, apesar das brincadeiras. Nem fiz questão de comer minha pequena porção. Virei para a estátua dourada de Nossinhora, aquela por que tanto brigaram para carregar (mas em que, na hora da porcada, ninguém reparou que estava largada em cima do formigueiro), e quis saber por que a mocinha havia deixado isso acontecer. Ela disse que porco também era filho de deus e, quando a estátua de Nossinhora fala, a gente não refuta.
Só sei que, no fim das contas, escondidinho, no banco de trás do carro, meu irmão mostrou que o tio Marcos tinha muito bem filmado toda a confusão.
- Hoje, não foi só a goiabeira que mudou.
Acho que minha mãe não vai se importar de mudar a data das fotos antigas.