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sábado, 14 de julho de 2012

Janelas


JANELAS, por Helena Zelic

JOAO
UM HOMEM NORMAL
LIA JORNAL
MAS SO AS MANCHETES

JOAO
JOGOU TUDO PRO ALTO
NUM SALTO SAIU
DE SEU MUNDO ABSTRATO
E
   TUDO
                 VIROU
                            POESIA
                                          CONCRETA.


Completei meus dezoito anos no último dia dezesseis. É curiosa a promessa que acompanha a maioridade, neste universo em que vigoram os mitos constitucionais, de que o é aos dezoito, apenas, que a janela para o mundo termina de se abrir para que o explore aquele que tiver a coragem; e que aos dezoito, apenas, é-se dono finalmente exclusivo de si para buscar seja lá o que for. (Lamentemos com sinceridade por aqueles que creem em lendas tais: para que o mundo estivesse aberto e para que se fosse dono de si, bastou-se nascer; o mundo está aí e promete continuar aí por tempos e tempos.)

Sem surpresas, fazer dezoito anos não mudou nada, exceto uma bobice ou outra que agora eu posso fazer sem recorrer a pequenos trâmites da ilegalidade. Ganhei um precioso presente (em termos físicos e concretos, porque a noite foi tão linda que eu a considero como um) e eu não esperava ou queria nada relacionado ao meu novo status de adulta, como garrafas de vodca, carros, vales-motel, entre outras coisas que, neste mesmo universo em que vigoram outros muitos mitos, dão a ilusão de que a vida só começa com elas. Passei uma noite fria e junina com fogueira, pinhão e gente querida, a partir de quem o mundo tem se revelado com mais verdade.

(Esses parágrafos prévios não são apenas uma impressão sobre a maioridade que registro aos adultos próximos que os lerão talvez; são pequena introdução para um fato curioso, com um tiquinho de lirismo lá no fundo, para os que acreditam nessas coisas.)

Voltou da bonita noite, dentro da mochila, um livrinho todo feito (escrito, diagramado, desenhado, recortado, dobrado, amarrado e entregue) com o esmero e afinco próprios da querida tão querida Helena; lacrado com nó de barbante, tem a capa com – que os deuses do design perdoem as próximas palavras – umas bolas coloridas, laranjas, amarelas, roxinhas e rosas, sobrepostas, com umas tiras cinzas cruzando-as horizontalmente, me lembra um pouco uma zebra; tudo tem uma marca d’água de ramos de flores e o título do livro vem numa bola branca jogada para a direita: se mínimo.

Sentei com minha mãe å mesa de café da manhã de domingo tomado ao meio dia e exibi meu presente, com a honra de quem possui o exemplar da primeira tiragem artesanal do que um dia será impresso aos milhões para que não falte poesia para ninguém. Lemos inteiro, passando as folhinhas uma a uma, ora sem dizer nada, ora com um comentário risonho ou admirado, ora separando os preferidos para poder reler depois com mais cuidado. Na semana seguinte, minha mãe apareceu com um pedacinho de papel usado para rabiscos de conversas telefônicas, em cujo verso escreveu quatro linhas humildes que me mostrou feliz, dizendo tê-las criado devido a uma onda de inspiração vinda dos escritos da Helena, o que configurou prova genuína e inconteste das capacidades salvadoras da literatura.


Antes de conhecê-la e de sermos amigas – adoro me lembrar disso –, lia seus poemas e me admirava ver que tão jovem criatura já tivesse pinceladas de escrita própria em suas aventuras literárias. O tempo que passei nos Tempos de Morangos me deu a sensação de que conhecia previamente uma pontinha de Helena; hoje vejo que uma tarde com ela e o não-sei-o-quê que um de seus poemas causa são tão parecidos que não se pode mesmo dissociar a arte do artista. Pensei rapidamente que neste texto faltaria falar um pouco mais de sua pessoa, mas divagar sobre suas borbolet(r)as já o faz.

se mínimo fala de janelas, janelas muitas, e fala do mundo e fala de versos. E daí me lembro dos meus recentes dezoito anos: nenhuma lei federal que me considera adulta abriu ou descobriu o resto do mundo para mim. Levei, contudo, na minha mochila, uma janela em forma de versos a partir dos quais poderia ver um mundo de novos parapeitos, da maneira com que prometiam as expectativas sobre maioridade nas quais nunca cri. Recebi um impulso novo para transformar (verbo intransitivo) em poesia concreta. Achei curiosa a coincidência, e feliz.

Ontem Helena me disse que chorou pelos tempos de seca poética pelos quais passava e pelo medo de um futuro medíocre. Não sou capaz de livrá-la desse medo; gostaria de saber como para livrar-me também. Mas borboletas amarelas são perseguidoras incessantes; se ontem mesmo saudamos Gabito por seus escritos destemidos sobre amores contrariados e estirpes condenadas, no futuro saudarão Helena e seu gosto por aliterações, janelas, versos, vírgulas, os infindos quê-mais que as procedem e seu gosto pelo mundo, sobretudo, amado no gerúndio. Eu já a saúdo.

Elejo meu preferido (daqueles que arrebatam sem muitos porquês):


EM BOCA FECHADA
NAO ENTRA
em todo seu céu da boca
tinha três milhões de estrelas
você fria se calava
só pra eu não poder vê-las.


Em leiga análise, me tocam a sofisticação da rima, dessas preciosas mesmo, a justeza e a precisão da imagem, de tamanhas sensibilidade e minúcia, e, por fim, por aquilo que serve a “arte dos pacientes” (e todas as outras artes) no fim das contas: pela busca e habilidade incansáveis de trazer lirismo e grandeza a eventos tão miúdos, mínimos, de um jeito que me acende a vontade de vivê-los – proeza essa que só alcançam os gênios obstinados.


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(A quem se interessar!)