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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Aos duplos - ao mundo, aos bichos, às coisas


Vou contar do dia em que vi algo inédito. Fui parar numa cozinha apertada, e à beira da pia havia uma moça ensaboando alguns copos. Aproximei-me para enxergar melhor seu rosto: as feições das pessoas enquanto lavam louça costumam ser muito serenas, e eu gosto de serenidade. Ela estava mesmo muito serena. Assisti à maneira com que passava a esponja na louça e ia separando os pratos ensaboados num canto, para enxaguar tudo de uma vez depois, num gestual velho e mecânico, um método, um vício de anos. Quando ela me viu, quando viu que alguém a olhava tão de perto e com a curiosidade das crianças e dos bichos, sorriu, sem me olhar. Qualquer outra pessoa que a visse nesse instante pensaria que lhe voltara à memória algum dia feliz, ou uma piada ou uma vergonha escondida: mas quem testemunhava aquela cena inédita era eu e eu sabia que aquele sorriso era para mim, ou por minha causa. Eu sorri de volta, inevitavelmente: essa moça era eu.

Era a primeira vez que nos víamos. Não havia muito o que conversar. Ela me disse que estava muito feliz por eu ter aparecido e por estar lhe fazendo alguma companhia, e me pediu para que eu a olhasse, a olhasse bem, e contasse tudo o que visse. Eu a vi terminar de lavar a louça e comentei sobre sua maneira automática de lavar pratos, e ela concordou. Fomos até a sala e sentamo-nos no sofá, tranquilas, ela ficou observando sua própria casa, redescobrindo novos detalhes das paredes – uma rachadura discreta, uma mancha que parecia uma maçã. Eu a observei observando, ela estava feliz e voltava a sorrir às vezes, e fizemos companhia silenciosa uma à outra por um tempo. Estávamos muito felizes. Ela seguiu para o quarto e eu lhe disse que ela mudou seu modo de andar só porque sabia que alguém estava olhando dessa vez. Ela riu, “é verdade”, disse. Ela deitou na cama, passou a mão pelos cabelos com os olhos arregalados, os dedos firmes pelo couro cabeludo, como costumava fazer quando pensava, e eu comentei: “você enfia os dedos nos cabelos quando pensa, e arregala os olhos”, e ela disse que sabia disso. Sentei-me na cômoda e a observei deitada, olhando o teto por meia hora sem perceber o tempo passando, como fazia quando brigava com a mãe; disse-lhe que ela deixava o tempo passar olhando para o teto e ela disse que sim, deixava. Eu a vi vestindo seus pijamas de velha, a ouvi escovando os dentes nos banheiro; ela se deitou para dormir, e sabia que eu continuava e continuaria sentada na cômoda. Estávamos felizes.

Ela dormiu, começou a sonhar e não a vi outra vez. Aliás: tive um vislumbre dela, meses depois, sentada em sua cama amarrando os cadarços (e só tive o tempo de vê-la erguendo o rosto para mim, espantada); outra vez abocanhando um pudim de chocolate; noutra, ela tomava banho, e eu de repente estava sentada no vaso sanitário ouvindo o chuveiro; a última vez quando ela descia de um ônibus. Eu suspeito de encontros mais antigos, como quando escondeu atrás de um quadro um desenho ruim que fizera aos dez anos, pra que ninguém o visse, nem ela mesma, mas que também ninguém jogasse fora; aos doze anos, ela teve orgasmos com os dedos no seu quarto da antiga casa, e chorou depois, pedindo desculpas pra Deus. Eu acho que eu estava lá nesse dia, mas também acho que não estava.

Por muito tempo, ela não se lembrou de mim, ou se lembrou com um carinho sem saudade. Houve o dia em que ela mergulhou em seu sofá, e clamou por mim, pra que nos sentássemos de novo ali e redescobríssemos novamente os detalhes das paredes numa outra noite feliz, quis minha presença, chorou por não tê-la, chorou por não poder me obrigar a vir, chorou por estar longe da própria companhia. “Eu não posso vir sempre, e acredite: nossos encontros me espantam mais do que espantam você.”


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Chorinho

Tem voz de pássaro, pia sozinho
e toca um samba.

Quis voar junto,
pardal,
mas não tenho um samba.

Fui ver se tava no pé:
não tava.

Cansei as pernas
sentei numa cadeira de plástico
e
chorando mais que as cuícas
Ai, ai
tomei um café.
Atenta aos teus rasantes
fiz coro contigo
e esperei.
- Vai que um dia ouves meu choro tímido.