Vou contar do dia em que vi algo
inédito. Fui parar numa cozinha apertada, e à beira da pia havia uma moça ensaboando
alguns copos. Aproximei-me para enxergar melhor seu rosto: as feições das
pessoas enquanto lavam louça costumam ser muito serenas, e eu gosto de serenidade.
Ela estava mesmo muito serena. Assisti à maneira com que passava a esponja na
louça e ia separando os pratos ensaboados num canto, para enxaguar tudo de uma
vez depois, num gestual velho e mecânico, um método, um vício de anos. Quando
ela me viu, quando viu que alguém a olhava tão de perto e com a curiosidade das
crianças e dos bichos, sorriu, sem me olhar. Qualquer outra pessoa que a visse
nesse instante pensaria que lhe voltara à memória algum dia feliz, ou uma piada
ou uma vergonha escondida: mas quem testemunhava aquela cena inédita era eu e eu
sabia que aquele sorriso era para mim, ou por minha causa. Eu sorri de volta,
inevitavelmente: essa moça era eu.
Era a primeira vez que nos víamos.
Não havia muito o que conversar. Ela me disse que estava muito feliz por eu ter
aparecido e por estar lhe fazendo alguma companhia, e me pediu para que eu a
olhasse, a olhasse bem, e contasse tudo o que visse. Eu a vi terminar de lavar
a louça e comentei sobre sua maneira automática de lavar pratos, e ela
concordou. Fomos até a sala e sentamo-nos no sofá, tranquilas, ela ficou
observando sua própria casa, redescobrindo novos detalhes das paredes – uma
rachadura discreta, uma mancha que parecia uma maçã. Eu a observei observando,
ela estava feliz e voltava a sorrir às vezes, e fizemos companhia silenciosa
uma à outra por um tempo. Estávamos muito felizes. Ela seguiu para o quarto e
eu lhe disse que ela mudou seu modo de andar só porque sabia que alguém estava
olhando dessa vez. Ela riu, “é verdade”, disse. Ela deitou na cama, passou a
mão pelos cabelos com os olhos arregalados, os dedos firmes pelo couro cabeludo,
como costumava fazer quando pensava, e eu comentei: “você enfia os dedos nos
cabelos quando pensa, e arregala os olhos”, e ela disse que sabia disso.
Sentei-me na cômoda e a observei deitada, olhando o teto por meia hora sem
perceber o tempo passando, como fazia quando brigava com a mãe; disse-lhe que
ela deixava o tempo passar olhando para o teto e ela disse que sim, deixava. Eu
a vi vestindo seus pijamas de velha, a ouvi escovando os dentes nos banheiro;
ela se deitou para dormir, e sabia que eu continuava e continuaria sentada na
cômoda. Estávamos felizes.
Ela dormiu, começou a sonhar e não
a vi outra vez. Aliás: tive um vislumbre dela, meses depois, sentada em sua
cama amarrando os cadarços (e só tive o tempo de vê-la erguendo o rosto para
mim, espantada); outra vez abocanhando um pudim de chocolate; noutra, ela
tomava banho, e eu de repente estava sentada no vaso sanitário ouvindo o
chuveiro; a última vez quando ela descia de um ônibus. Eu suspeito de encontros
mais antigos, como quando escondeu atrás de um quadro um desenho ruim que fizera
aos dez anos, pra que ninguém o visse, nem ela mesma, mas que também ninguém
jogasse fora; aos doze anos, ela teve orgasmos com os dedos no seu quarto da
antiga casa, e chorou depois, pedindo desculpas pra Deus. Eu acho que eu estava
lá nesse dia, mas também acho que não estava.
Por muito tempo, ela não se
lembrou de mim, ou se lembrou com um carinho sem saudade. Houve o dia em que
ela mergulhou em seu sofá, e clamou por mim, pra que nos sentássemos de novo
ali e redescobríssemos novamente os detalhes das paredes numa outra noite
feliz, quis minha presença, chorou por não tê-la, chorou por não poder me
obrigar a vir, chorou por estar longe da própria companhia. “Eu não posso vir
sempre, e acredite: nossos encontros me espantam mais do que espantam você.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário