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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

As mais caras galinhas do mundo


"Uma pessoa que tem casa mas não tem horta... pra mim, não é gente, não!"
"Eu achei que era o desconto da galinha!"
"Coloca esse dinheiro aqui que eu jogo no meio da rua."



           Um homem adentrou a loja a passos firmes e, como se soassem trombetas, caminhou dignamente até o balcão. O velhote dono do bazar o recebeu com o resto de solicitude que pôde salvar de seus muitos anos de comércio e reconheceu-o numa surpresa feliz como um vizinho de longa data, que, contudo, jamais havia postos os pés na loja. Toda a dignidade de sua grande entrada desvaneceu com seus dizeres seguintes e trêmulos, que cozinharam em sua garganta por muito tempo antes de saírem cuspidos.
                – Vim quitar uma dívida.
            Dois riscos se juntaram às muitas rugas da testa velha do comerciante, numa reação àquela fala muito inesperada, até que a história, há muito tida como resolvida, revisitasse suas lembranças enquanto era explicada numa severa economia de palavras pelo homem à sua frente. Os riscos sumiram, o velho riu sincero como há tempos não fazia e, tirando da boca o palito mastigado, balançou a cabeça e disse que não: aquela dívida já estava paga.


         Cerca de trinta anos mais novo do que naquela tarde de chuviscos, quando as ruas ainda eram de terra e quando ainda prometiam que a estrada São Paulo-Rio seria alargada, seu Pascoal, num meio-dia de domingo, que é dia santo, como dizem os mandamentos, não abriu o bazar (que já existia naqueles tempos, logo abaixo da casa da família) e anunciou à mulher Maria e às três filhas que aquele seria um bom dia para comer um ensopado da galinha velha que morava com uma companheira no poleiro dos fundos da casa.
Moravam num bairro residencial acolhedor, daqueles em que as pessoas se cumprimentam ao abrir janelas, trocam doces caseiros em noites de festa e botam os filhos pequenos para brincar juntos no quintal (que acabavam, quando adultos, cumprimentando os antigos colegas de longas tardes com um aceno de cabeça e um sorrisinho corrido: o destino das amizades precoces). A casa à sua direita era de uma moça de meia-idade, Márcia, que a cada manhã dava bom-dias mais cansados aos parapeitos vizinhos, e mãe de dois filhos de pai morto: morto porque Márcia aprenderia, depois da ida sem volta do marido para sabe-se lá onde, a inventar a morte das pessoas e a promover esquecimentos sem dor. Os filhos, Roberto e Osmar, de oito e dez anos, sabiam com certeza que o pai estava bastante vivo, obrigado, mas Márcia sabia do contrário com a mesma certeza. Do outro lado morava o sargento Juvenal, de humores enrijecidos pela vida militar e ainda mais por ter se aposentado sem conseguir ascender às patentes superiores, dono de um pequeno terreno vazio ao lado esquerdo da família de Maria e Pascoal. Morava logo depois do terreno de que era proprietário, num sobrado simples mas sempre nos trinques. A filha mais velha do casal de comerciantes, com doze anos na época em que a história aconteceu, gostava de especular o que aquele sargento, que tão bem sabia se postar com imponência, fazia quando estava em casa, pois a única coisa que comprava no bazar da família eram alguns centímetros de fita de cetim. A menina adorava incomodar o sono noturno das irmãs mais novas, que só podiam temer um homem que não se via esboçar sorriso, com histórias de que ele usava a fita para presentear crianças, dizendo que iria amarrá-la no pescoço das coitadas como um colarzinho, mas acabava por esganá-las sem dó.
– Então a gente não deveria vender essas coisas pra ele – a caçula, astuta, retrucou, ao que a mais velha respondeu que, se recusasse a venda, ele desconfiaria e faria dela a próxima vitima. Mas ela mesmo achava que o sargento não sorria porque não tinha dentes, e ele amarrava a fita no dedo indicador na hora de dormir, para que, quando acordasse, lembrasse de botar as dentaduras para não passar vergonha caso um ataque de riso o acometesse. (Maria, a mãe, numa noite, indo fechar a janela do quarto, viu numa grande mesa de mogno o sargento Juvenal trocando as velhas fitas de cetim das suas caras medalhas dos tempos militares por fitas novas que comprava em sua loja, mas morreu com essa informação, pois não é um fato que se guarde com muitas chaves na cabeça; mas sabia também que a mulher do sargento o chamava de Juva, e essa manifestação de carinho tão banal fez com que deixasse de vê-lo como um homem tão durão. Guardou esta informação também.)
Acontece que Maria e Pascoal há três anos ambicionavam em comprar o terreno do lado esquerdo da casa, propriedade do sargento, para ampliar um pouco as capacidades do bazar, que prosperava. Ter conseguido a quantia necessária para comprá-lo foi a conquista da semana, e tal era o motivo para festejar o domingo com um ensopado de frango.
– Pois pegue a coitada enquanto afio a faca – Maria pediu, tirando da última gaveta o facão que a havia feito aprender na marra queira-ou-não-queira que bicho não tem alma.
Pascoal foi buscar. Voltou quase ao mesmo tempo que foi.
– A danada não está lá.
– Tem duas. Pois pegue a outra.
– Não tem mais.
Foram averiguar os arredores da casa. Não poderiam ter ido muito longe: ontem mesmo estavam onde sempre estiveram botando seus ovos. O galinheiro era cercado por um arame, pouco alto, é verdade, mas suficiente pra não deixar as gatunas escaparem: galinha faz alvoroço, mas não levanta voo, disso tinha certeza. Pascoal ficou pensando se elas pressentiram a vinda do ensopado da morte e se conseguiram algum poder extraordinário de fuga, desses que aparecem nos momentos de provação e intempérie, mas depois que perguntou pras filhas, que brincavam saltitantes de amarelinha no quintal com o menino Roberto e Osmar, filhos de pai morto, se tinham eventualmente visto por aí duas galinhas perambulando, e depois de olhar embaixo das camas, dentro dos armários e todo possível canto da casa e do bazar, descartou de vez a ideia de que elas escaparam. Aquilo era irremediavelmente um caso de ladrão de galinha.
– Podia ter deixado a outra! Pra comemorar o dia em que comprássemos o terreno, ao menos.
O pai se conformou de pronto, mas Maria, por sua vez, obstinou-se na busca; já ia mandar os moleques, filhos de pai morto e da vizinha, direto pra casa, pois  não era mais hora de brincadeira, mas o menino, que conhecia a mãe das colegas de longas tardes, pressentiu o perigo e já tinha partido para casa com o irmão. Mas, como suas raivas passavam tão rápidas quanto chegavam, logo estavam todos jantando um ensopado de legumes que cultivavam na horta dos fundos (que, no fim das contas, sempre recebera mais atenção do que qualquer outro serviço de Pascoal, que era da opinião de que uma pessoa que não tinha horta em casa não era gente).
Ao entardecer da segunda-feira, dia seguinte ao sumiço das galinhas, Pascoal viu algo que abalou as estruturas da certeza que tinha sobre a compra do terreno. Era fim do expediente, as portas do bazar já tinham sido fechadas, Maria subira para banhar as meninas. Pascoal baixava as portas da loja, que dava de frente para a rua e dividia paredes com o terreno (que dividia paredes com a casa do sargento), quando viu, na caçamba de lixo do velho militar, um monte de penas. Parou. Olhou para os lados, a rua estava praticamente vazia, os comércios fechados, as crianças encardidas de empinar pipa e pular amarelinha já estavam em suas casas de banho tomado... e ele resolveu se aproximar, averiguar melhor e ter certeza de que não era truque de seus olhos, ilusão de ótica ou golpe de vista. Espichou o olho para dentro da caçamba e não havia dúvidas: uma porção de penas da mesma cor das galinhas; o sargento as roubara, e o cheiro de ensopado de frango era inegável àquela hora, mas jamais soube se, naquele momento, seu nariz o estava enganando ou se alguém estava se empanturrando com suas galinhas de fato.
Homem ponderado que era, pensava duas vezes antes de agir. Imaginou-se indo até o sargento tirar satisfações sobre aquelas penas todas e dizendo que, coincidentemente, suas galinhas haviam desaparecido, de um modo bem irônico e desafiador. Contudo, era do tipo que descartava essas ideias ao mesmo tempo que as formulava, pois sabia que não teria coragem de peitá-lo daquela maneira, sendo o sargento o homem que era, do tipo que não esboçava sorriso, e homem que não sorri só pode não ter o menor escrúpulo. Sabia também que, se comentasse qualquer coisa com Maria, que nunca apareceu em casa com desaforo, a mulher viraria uma leoa e iria até a casa do vizinho com o facão de matar bicho e exigiria os frangos, nem que os levasse vomitados de volta para o galinheiro – o que poderia ser um perigo para ambos. Comprar o terreno já não o animava tanto quanto antes: se o sargento, aposentado militar e consequentemente sem problemas financeiros, roubava um parzinho de galinhas, nada garantia que os trâmites da compra se dariam na legalidade com que costumava levar sua vida, ou que o sargento não lhe passaria a perna de alguma forma. Entretanto, desistir da compra sem uma boa explicação não satisfaria a mulher, então, decidiu: voltaria para casa fingindo que aquelas penas na caçamba não tinham sido vistas, e fim.  
Poucos dias depois, ainda na mesma semana, o casal foi junto manifestar ao sargento o desejo de comprar o terreno. Sabiam que a Jesuíta da Nova São Miguel também estava deveras interessada, mas sabiam também que preferência se dá sempre pro vizinho, e reclamaram ao sargento essa prioridade. Juvenal prioridade não dava, mas dava desconto.
– Faço 180 pra ela, 120 pra vocês.
Pascoal de pronto só pode interpretar aquele desconto estonteante como um irremediável peso na consciência pelo roubo das galinhas. Fecharam negócio com um aperto de mãos e um olhar cúmplice de quem entende a negociação, que, para Pascoal, era claramente mais que um sinal de preferência ao vizinho e sim um acerto de contas, tácito para sempre porém muito bem selado.
“Caras, essas galinhas, não?” é o que pensaria pelos próximos trinta anos, até aquela tarde de chuviscos, em que as ruas já eram de asfalto e a estrada São Paulo-Rio mudara o nome para Avenida Marechal Tito e jamais seria alargada, quando o homem caminhou para seu balcão para quitar uma dívida. O sargento Juvenal, Juva para a mulher, e falecido há uns bons anos, era o culpado até as parcas palavras de Roberto, filho de pai morto, quase a completar a quarta década de vida, explicarem que, sim, o ladrão daquele par de galinhas era ele, porque a mãe Márcia, que inventara muitas mortes até a sua própria, pedira pra ir catá-las na calada da noite porque faltava comida na mesa; agora que podia, gostaria de pagar a dívida, certamente uma quantia menor que o desconto concedido a Pascoal pelo sargento, e de tirar o peso de trinta anos da consciência junto com as notas que tirava do bolso. Pascoal recusou, obviamente, e Maria também, ao se achegar na conversa dos dois, pois as dívidas dos famintos são do tipo que se quita ao mesmo tempo que se contrai. Roberto insistiu.
– Coloca esse dinheiro aqui que eu jogo no meio da rua – Maria disse, sendo aquela a maior verdade que diria na vida.
Se a quantia foi parar no meio da rua ou não, não se sabe, ou quanto tempo durou aquela conversa, mas o sargento descansou em paz finalmente (se é que militares têm paz depois de mortos), Pascoal diria aos netos anos adiante que aquilo era história de cinema e Roberto tirou enfim o repetido pedido de perdão de suas rezas.

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