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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Metamorfose

Texto escrito em dezembro de 2011, a um amigo por quem eu, muito provavelmente - lendo esse texto três anos depois e distante das névoas da adolescência - devia ser apaixonada. Feliz por ter encontrado isso nas profundezas do computador...
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Acabo de descobrir a maior das metamorfoses.

Era um daqueles momentos em que se fala sem pensar – aliás, pensa-fala, sem a segura e prudente mediação entre uma coisa e outra –, e nele acabei afirmando que você (devo escrever a você ou deixo a pieguice para um texto que de fato lhe for chegar às mãos?) era uma das melhores partes da minha vida, e é bem verdade. São aquelas conversas com amantes amáveis em que a gente revela (e descobre) nossas paixões, no prazer de dividi-las e de se gabar de nossas vidas nessa área generosas. Você (a você então) é mesmo uma das melhores partes da minha vida.
            
Eu gosto de finais. Eu os imagino o tempo todo, gosto de supor o que vai me atingir, seja desespero ou amor ou nostalgia precoce ou indiferença (sendo esta última uma previsão bem rara, porque não projeto finais, senão por mero acidente, com pessoas que vão me causar só um vazio insosso, e isso não tem a menor graça). Mas, acima de tudo, gosto de pensar no que vou dizer. Confesso que meus finais sobre você foram os que me tomaram mais tempo, o que eu tinha parar dizer era interminável. Eu via filmes, música, livros, poesia – arte em você, mal sabia como terminar, tampouco começar; só havia palavras jogadas, desconexas e, necessariamente, destinadas aos seus ouvidos, e nada mais. Elas nasciam em mim para que terminassem em você, sem discussão.
            
Mas eu sei o que acontece; é o que, como disse, acabei de descobrir. Você vai viver a sua vida, eu, a minha, e não vamos mais dividi-las, porque aquela história de “vou até onde precisar para te ver” não passará de mero simbolismo, bobice sincera dita em ardor de momento. Nós vamos nos ver dia ou outro, os assuntos que não terminavam vão terminar e vamos acabar guardando para si um ou outro acontecimento, porque na hora dá-se sempre um jeito de esquecer o pacto de que entre nós não haveria segredos. Seremos mera obrigação de aniversário, um e-mail, um cartão; depois nem isso. Não vou mais te ver, numa noite vou olhar nossas fotos e vou chorar de saudades, tentando entender por que, no momento em que chegou nosso fim de fato, as palavras, aquelas que me tomaram tanto tempo, não couberam na minha boca ou pareciam não caber nos seus ouvidos – justo elas, nascidas em mim para que morressem em você, agora mais jogadas e desconexas que nunca, órfãs. Vou revirar minhas memórias procurando o exato momento e o que nele aconteceu que fez com que elas parecessem tão impróprias, vou procurar e não vou achar. Vou querer saber por que você, de melhor parte de vida, era agora uma foto. Vou tentar sem remédio lembrar quando a metamorfose aconteceu; como? Não vou lembrar sequer quando te vi pela última vez – não me lembro agora.
            
Você será uma foto, junto a outras fotos dos meus amiguinhos da pré-escola de quem eu tanto gostava e cujos nomes há muito me fugiram. Vai ser foto, tampa de garrafa, bilhete de cinema, ou uma frase que você repetia muito e que o traz à minha mente, ou um lugar a que íamos com frequência ou no qual só estive com você. Se um dia te quis para sempre, em outro pouco farei para que seja mais que a foto que se encontra quando se faz arrumação das gavetas da cômoda. Vou te dizer tudo isso num momento aleatório, daqui a um ou dois anos, por carta ou mensagem de celular, e, seja lá qual for sua resposta, ela só vai confirmar esse final alternativo que estou projetando agora, tão certeiro. “Lembra quando a gente... e que pena que agora...”.

E é assim que você vai morrer, morrer para o mundo: no mesmo segundo em que morrer a última pessoa que souber vê-lo nesses objetos e frases e lugares nos quais você se tornou. Aí a foto vai ser foto, a tampa vai ser tampa, bilhete vai ser bilhete, tal como Caeiro nos disse sobre as pedras que não são além de pedras. (Acredito que essa última pessoa será eu, e espero que seja – vai ser como se morrêssemos juntos.)

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