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Acabo de descobrir a maior das
metamorfoses.
Era um daqueles momentos em que se
fala sem pensar – aliás, pensa-fala, sem a segura e prudente mediação entre uma
coisa e outra –, e nele acabei afirmando que você (devo escrever a você ou deixo a pieguice para um texto
que de fato lhe for chegar às mãos?) era uma das melhores partes da minha vida,
e é bem verdade. São aquelas conversas com amantes amáveis em que a gente
revela (e descobre) nossas paixões, no prazer de dividi-las e de se gabar de nossas
vidas nessa área generosas. Você (a você
então) é mesmo uma das melhores partes da minha vida.
Eu gosto de finais. Eu os imagino o
tempo todo, gosto de supor o que vai me atingir, seja desespero ou amor ou
nostalgia precoce ou indiferença (sendo esta última uma previsão bem rara,
porque não projeto finais, senão por mero acidente, com pessoas que vão me
causar só um vazio insosso, e isso não tem a menor graça). Mas, acima de tudo,
gosto de pensar no que vou dizer. Confesso que meus finais sobre você foram os
que me tomaram mais tempo, o que eu tinha parar dizer era interminável. Eu via
filmes, música, livros, poesia – arte em você, mal sabia como terminar,
tampouco começar; só havia palavras jogadas, desconexas e, necessariamente,
destinadas aos seus ouvidos, e nada mais. Elas nasciam em mim para que
terminassem em você, sem discussão.
Mas eu sei o que acontece; é o que,
como disse, acabei de descobrir. Você vai viver a sua vida, eu, a minha, e não
vamos mais dividi-las, porque aquela história de “vou até onde precisar para te
ver” não passará de mero simbolismo, bobice sincera dita em ardor de momento.
Nós vamos nos ver dia ou outro, os assuntos que não terminavam vão terminar e
vamos acabar guardando para si um ou outro acontecimento, porque na hora dá-se
sempre um jeito de esquecer o pacto de que entre nós não haveria segredos.
Seremos mera obrigação de aniversário, um e-mail, um cartão; depois nem isso.
Não vou mais te ver, numa noite vou olhar nossas fotos e vou chorar de
saudades, tentando entender por que, no momento em que chegou nosso fim de
fato, as palavras, aquelas que me tomaram tanto tempo, não couberam na minha
boca ou pareciam não caber nos seus ouvidos – justo elas, nascidas em mim para
que morressem em você, agora mais jogadas e desconexas que nunca, órfãs. Vou
revirar minhas memórias procurando o exato momento e o que nele aconteceu que
fez com que elas parecessem tão impróprias, vou procurar e não vou achar. Vou
querer saber por que você, de melhor parte de vida, era agora uma foto. Vou
tentar sem remédio lembrar quando a metamorfose aconteceu; como? Não vou
lembrar sequer quando te vi pela última vez – não me lembro agora.
Você será uma foto, junto a outras
fotos dos meus amiguinhos da pré-escola de quem eu tanto gostava e cujos nomes
há muito me fugiram. Vai ser foto, tampa de garrafa, bilhete de cinema, ou uma
frase que você repetia muito e que o traz à minha mente, ou um lugar a que
íamos com frequência ou no qual só estive com você. Se um dia te quis para
sempre, em outro pouco farei para que seja mais que a foto que se encontra
quando se faz arrumação das gavetas da cômoda. Vou te dizer tudo isso num
momento aleatório, daqui a um ou dois anos, por carta ou mensagem de celular,
e, seja lá qual for sua resposta, ela só vai confirmar esse final alternativo
que estou projetando agora, tão certeiro. “Lembra quando a gente... e que pena
que agora...”.
E é assim que você vai morrer, morrer
para o mundo: no mesmo segundo em que morrer a última pessoa que souber vê-lo
nesses objetos e frases e lugares nos quais você se tornou. Aí a foto vai ser
foto, a tampa vai ser tampa, bilhete vai ser bilhete, tal como Caeiro nos disse
sobre as pedras que não são além de pedras. (Acredito que essa última pessoa
será eu, e espero que seja – vai ser como se morrêssemos juntos.)
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