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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Do dia em que reencontrei uma antiga carta e foi um espanto

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem  – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”.  – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?", pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? - Nietzsche

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Uma única e mesquinha vez a cada repetida vida, como fiz hoje, eu vou reencontrar numa gaveta essa carta antiga de anos atrás, e, depois de lê-la, tão rápido e tão ansiosa para alcançar o final (a parte mais bonita, sobre a saudade), eu vou me deitar na cama com as mãos no peito e vou chorar como as mães nos batismos, perguntando às paredes como é que uns rabiscos velhos, a lápis, podiam ser tão epifânicos e tão espantosos, e forjar uma beleza gigante como as árvores centenárias num quarto que é só do tamanho do meu - tão pequeno. 

Foi um espanto, de abrir as janelas e gritar aos vizinhos: “VOCÊS ESTÃO VENDO O QUE ACABA DE ACONTECER NO MEU QUARTO?”. As luzes das casas se acenderam e as famílias saíram à rua curiosas esperando, quem sabe, um incêndio ou algo mais impressionante – e viram só o meu espanto. E eu, que poderia fazer? Gaguejei uma frase ou outra, me expliquei como pude, e eles voltaram a dormir. Mas é justo que essa manifestação da vida, um demônio tentando uma mortal, esse evento que me fará assinar o contrato da eterna repetição da minha história, é justo que só tenha uma testemunha e que ela seja eu?

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