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sábado, 11 de março de 2017

Oceano

A onda trouxe para a areia um corpo morto de homem. 

O mar não é mau; o mar é bom. O mar não matou o homem; o mar trouxe o homem de volta. Para não ser comido pelo sol, pelo sal e pelos peixes. Para ser enterrado na terra, dura e boa de andar, onde ele passeava e trabalhava. Para a família arrastar o homem para um bom caixão de boa madeira, para poder chorar, se abraçar e cheirar os crisântemos. O mar sabe: o que é da terra não volta ao pó insepulto. Por isso o mar é bom.

Conhece alguma história de alguma coisa, qualquer coisa ou gente, que tenha ficado para todo o sempre a boiar no meio do Pacífico, o maior oceano dos mapas?

Não. Se conhece te mentiram. Isso não acontece. O mar não deixa morrer consigo coisa que é da terra, como o homem e a mulher. Somos da terra.

Por isso confio na maré. Mesmo na noite fria e escura, escura como a coisa mais escura que existe, estou serena e tranquila, e também sob o impiedoso sol de antes e depois. Não tenho uma boia ou pedaço morto de árvore para descansar ou não engolir água salgada durante as tempestades. Estou mergulhada nas águas do Pacífico.

Um homem, o meu homem, aquele e não outro, está de pé numa praia nublada, fria, de areia grossa e dura, de vento cortante, agasalhado e molhado, porque chove fino. Ele olha o mar esperando alguma coisa, talvez a brisa ou um pensamento bom. Sereno, mesmo durante as tempestades, noites frias e sob o sol tímido de antes e depois.

Estou mergulhada nas águas do Pacífico. Vivo com o passeio dos ventos, grandes chuvas, as estrelas e o frio da noite, o sol de antes e depois, a força de mil peixes nadando no azul profundo, as toneladas e toneladas de sal. Às vezes mergulho e nado o mais fundo que posso. Não me arde mais os olhos. Tudo é tão azul embaixo do mar; mas não azul triste, é azul grande. Sempre nado de volta desesperada porque o ar nos pulmões humanos não é infinito, e às vezes me esqueço disso. Engoli toneladas de sal pois tentei matar a sede. O mar não mata ninguém, porque o que mata é outra coisa. Nos momentos tranquilos olhava o céu, os pássaros, a noite de estrelas, esperando uma brisa, um pensamento bom e a minha vez de ser devolvida para a terra para encontrar meu homem.

Quantas ondas ainda quebrariam na costa? Quantos quilos de sal ainda matariam minha sede? Quantos grandes navios cheios de cargas do estrangeiro passariam por perto e eu deixaria partir sem pedir ajuda?

Sabia que se a espera fosse grande, ia deixar de confiar no mar. Ia lembrar das histórias de coisas ou gentes que ficaram para sempre a boiar no maior oceano dos mapas, histórias sim mentirosas!, e ia desconfiar delas, de que elas poderiam ser verdade. E se fosse verdade? E se até fosse mentira mas minha história fosse a primeira, e a partir dela passasse a ser verdade? A partir de quando eu ia passar a gritar para o céu e constelações que eu era uma mulher, que como o homem é coisa da terra? Que eu poderia até morrer, sim, de saudade, a maldita e desgraçada, mas que o mar tinha de me trazer de volta? Me traga de volta. Me traga de volta. Sou da terra. Minha mãe precisa me chorar - agora só aceito sal de lágrima de mãe!

A vida não permite amor desencontrado pois isso é grande desperdício. Sempre joga alguém no mar. A vida é boa. Guarda o que é de cada um, vivo ou morto. 

Chegou. Não morri. De repente o quebrar das ondas me envolveu por completo. Levando algas e pequenos peixes, me fez dar cambalhotas e perder o ar tantas vezes, buscando o mundo desesperada. Tirava a cabeça de dentro da água e ouvia a espuma do mar. Quebrada a última onda, minha mensageira, senti um solo áspero me arranhando o rosto. Uma brisa fria. Encostei minhas mãos na terra, numa areia grossa e dura, uma sensação tão grande. Sou da terra. Tossi muita e muita água. Era como nascer - molhado como um parto.

Ele correu até mim, me ajudou a me erguer. Perguntou se estava tudo bem com a moça. Olhei para ele, disse que estava. Tossi mais vezes. Torci os cabelos, tirei areia dos bolsos. Ele perguntou surpreso ao me reconhecer o que eu fazia ali, pois era uma grande coincidência, depois de tanto tempo. Um café quente me faria bem. Eu lhe diria: sim, faria muito bem.

Não é que se está à deriva, é outra coisa: é dar um passeio com o acaso. A soma dos acasos não dá muitos acasos, dá oceano: que maravilhosa combinação de ondas, correntes de vento e de mar, chuvas e sóis, me fez atracar na mesma costa onde aquele e não outro homem buscava a serena brisa?

Mataríamos a ardilosa curiosidade, que por anos foi como uma nuvem e uma sombra. Dali para frente seria uma, ou algumas, ou muitas, ou todas as noites de nossa vida. Seria grandioso ou pequenino. Caberia ou não no Tempo. Quem há de responder?

Não precisei fazer nada, sequer uma braçada: nossa força é oceano.





dez/2016

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