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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Evidentia

Os muito sensatos que me perdoem, mas loucura é fundamental.

Numa daquelas conversas sobre orgasmos artísticos, com minha amiga e esposa Amanda Guedes, que passeiam por Strokes, Vinicius de Moraes, Beirut e por nós mesmas (por que não?), veio à pauta uma mulher digna de nota.

Francesa, 45 anos, bailarina. Existe aquela ideia de que carreira de bailarino clássico dura pouco; é até verdade. De que aos 45 anos já se deve estar aposentado ou dando aulas aos seus sucessores. Mas isso não é nem de longe, ou de muito longe, aplicável à mulher de corpo magro, esguio, ágil, flexível, expressivo e de controle e possibilidades impressionantes.

Da primeira vez que tive contato com seu trabalho, confesso que não o compreendi muito bem; ele permaneceu algo vago e misterioso. Percebi, porém, que era profundo, profundo demais para que eu pudesse traduzi-lo. Resultou em frustração, porque sabia que dali muito se podia tirar. Intrigante.
Era bem mais do que se via. Ou era simplesmente o que se via.
Espantoso, hipnótico.

E, há um ano, foi com esse discurso, num inglês afrancesado que transcrevi com certa dificuldade, que me atingiram suas palavras pela primeira vez:

“Acho que você precisa ser louco para ir para o palco, sério, porque... todos os loucos são completamente normais, eu não sei. Talvez as pessoas de fora que são loucas. Não ser louco evita muita... liberdade. Duas pessoas realmente loucas conversando uma com a outra, quero dizer, mesmo que elas falem línguas diferentes, se compreendem."

Tal efeito o do trabalho, tal efeito o do discurso.
Um ano se passou, minhas atenções foram pra outros cantos, e acabou que me lembrei dela: fui ouvir novamente suas palavras e assistir à sua arte outra vez. Desta vez, busquei algo mais; não ficaria apenas com o aperitivo.

“Tem a ver com amor, tem a ver com paixão, e a maioria dos profissionais se esquece disso.”

Então, ela faz arte, e a faz com amor? Como se reúne e faz-se compreender e definir as duas coisas mais incompreensíveis e indefiníveis? Loucura.

“Para dar, produzir emoção você tem sempre que ser duvidoso sobre o que faz, sobre o que fará e o que fez também, porque duvidar e arriscar cria um momento de urgência para encontra emoção real. (...) se você prepara muito, se você pensa muito sobre, todo o instinto, tudo de si mesmo (...) se esconderá em algum lugar, atrás da coreografia, atrás de todo esse tipo de coisa. Mas, se você duvida, você realmente coloca-se nu.
(...)

É importante temer ir ao palco, do contrário (...) você sabe exatamente o que funciona, o que não funciona, o quanto você tem que dar; fica fácil de fazer. Isso é arte, (...) cada vez que você dá um passo para o palco, é importante saber que isso é perigoso, que você tem que encontrar uma maneira de ir mais para dentro de si, mais profundamente a cada vez, pra encontrar e saber se você é capaz de dar mais; se você TEM mais em si.

(...)

Sinto muito prazer brincando com meu corpo e meus pés e minhas pernas e minhas costas, e pode até ser divertido... há tantas possibilidades para descobrir novos, bem, movimentos e expressões de si mesmo, e essa técnica pode também ser muito recompensadora.”

Ela é louca.

Mostrei esses dizeres para Amanda, que é também amiga de arte, de amor e de filosofia; logo em seguida, estávamos recitando declarações de amor para a tal bailarina pirada, felizes por não falarmos francês, mas ainda assim falarmos a língua de uma francesa em especial.

Sabe, isso tudo não é aplicável apenas à dança, tampouco apenas à arte. Quero fazer deste texto um convite e um incentivo pra que ninguém tenha mais medo de olhar para dentro de si mesmo e descobrir e explorar o que raios jaz por ali. Não se preocupe; por mais espantoso que seja, por mais doentio que pareça, por mais sem sentido que soe, por mais louco que aparente, calma! É apenas você. Ponha-se nu.

As possibilidades não são poucas.

Aja duas vezes antes de pensar. Planos são uma merda. Ideias de nada valem se a ação não corresponde.
Fique louco.

Confesso que eu mesma encontro obstáculos para seguir tudo o que nos disse a artista em questão (tenho problemas com planos...), mas tento. E, mesmo que eu tenha amadurecido e me explorado um pouco mais, ela continua sendo espantosa, hipnótica e intrigante. Talvez eu não seja louca o suficiente – ainda.

Pessoalmente, as tais coisas indefiníveis e incompreensíveis me ganharam nova cara, nova luz. Que amor, arte e loucura sejam intrínsecos; que o medo e o receio fiquem longe; que a sinceridade, o autoconhecimento, a liberdade, a emoção, a razão e as possibilidades sejam consequência.

Para todos!

1 bj admirado e agradecido à SYLVIE GUILLEM.

"Vie et danse. Life et, and dance. Evidentia." (Vida e dança)


Evidentia é um documentário feito por Sylvie em 1995, iniciado pela frase “Movement is life” (Movimento é vida). Tem 5 partes principais, mas a que escolho pôr aqui, embora recomende todas elas, é a parte 3 de Smoke. Pirem! (A parte que mais me agrada e arrepia é quando ela tira uma carta da boca, a lê, deixa cair e se olha no espelho.)



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