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A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela
não perde o que merece ser salvo.
Febre de meus adentros: as cidades e as gentes, soltas da memória,
navegam para mim: terra onde nasci, filhos que fiz, homens e mulheres que me
aumentaram a alma.” Eduardo Galeano, “Dias e noites de amor e de guerra”.
Fui
dormir e acordei na Costa Rica. Estava num deck: fui conhecer a varanda de um castelo
e essa varanda era um deck, o maior deck das Américas. A luz da lua, embora não
houvesse lua naquela noite, me mostrava no chão infinitas tábuas estreitas de
madeira justapostas compondo um imenso sem-fim perdido às vistas corredor entre
as paredes de um castelo e o mar, ou um lago, ou uma represa. A noite era tão
escura que a água se misturou com o céu num negrume que não me daria certeza de
nada – mas era mais que certo que eu fui visitar a varanda de um castelo na
Costa Rica numa noite sem lua e encontrei o maior deck das Américas.
E eu
corri. Deixei a porta da varanda aberta e corri, como corria nos corredores da
minha primeira escola, que sempre acabavam cedo demais pra minha vontade de
sentir vento na cara. Eu corri. Minhas pernas não se cansaram nem cansariam
jamais depois dos anos que eu passaria ali se pudesse, e eu fui tão rápida que
comecei a flutuar a cada passo, como se a velocidade me desse molas nos pés,
como se estivesse na lua (talvez seja por isso que eu não a estivesse vendo
aquela noite). Comecei a correr e saltar, dava giros no ar, caía de volta no
chão para saltar de novo cada vez mais alto, sacudi meus braços, pernas e
cabelos, e fiz todos aqueles passos de que ouvia falar nas minhas aulas de
ballet e não conseguiria fazer nem sonhando – só sonhando. Eu podia mover o
deck sob mim. Deslizá-lo. Podia retroceder ou avançar tantas tábuas quanto
quisesse e, a cada salto, aterrissar onde eu desejasse. E eu desejei conhecer a
última tábua do deck: saltei, dei voltas, abri as pernas no ar como as
bailarinas e caí a poucas tábuas do fim do deck. Meus freios falhos não me
dariam certeza de que conseguiria parar o impulso do salto a tempo de não cair
na água – mas era mais que certo que eu não cairia, eu não tinha medo. Não caí:
meus pés tocaram a última tábua do deck sem fim, balancei meu corpo em direção
à água, me equilibrei, dei meia volta e corri mais.
Fui
feliz por estar num deck sem fim.
Fui
à Costa Rica e acordei em casa. Gostaria de ter bom traço para poder desenhar
um deck que conheci, mas, como não faria jus, procuro-o para levar os homens e
mulheres que me aumentaram a alma para correr comigo. Porque o maior deck das
Américas é meio como amores: talvez não me permita fazer coisas que sei que não
posso, nem seja tão grande quanto promete – mas ainda assim longo demais para
pares de pernas cansadas – e talvez o fim seja o fim mesmo.
Mas
quero correr. Sem metáforas, eu quero correr à noite num deck enorme, e tudo
bem não haver castelo. Correr para sentir o suor escorrendo e ouvir o barulho
dos meus pés nas tábuas a cada salto e pernada e cair rolando no chão por
tentar dar piruetas no ar, e sentir dor, pra levantar e continuar correndo, correndo,
saltando e gritando, porque é isso o que eu faço quando fico feliz. Ficar morta
de cansaço, sentar no chão esparramada, ouvindo o barulho da água, sentindo sei
lá que cheiro; tatear fiapos de madeira ameaçando fincar meus dedos, sentir
minha respiração ofegante, o rosto quente e – a pulsação, no meu peito, pescoço
e têmporas, cantando para mim; e me lembrando os efeitos colaterais
dessas doses de realidade.