"Uma pessoa que tem casa mas não tem horta...
pra mim, não é gente, não!"
"Eu achei que era o desconto da galinha!"
"Coloca esse dinheiro aqui que eu jogo no
meio da rua."
Um homem adentrou a loja a passos
firmes e, como se soassem trombetas, caminhou dignamente até o balcão. O
velhote dono do bazar o recebeu com o resto de solicitude que pôde salvar de
seus muitos anos de comércio e reconheceu-o numa surpresa feliz como um vizinho
de longa data, que, contudo, jamais havia postos os pés na loja. Toda a
dignidade de sua grande entrada desvaneceu com seus dizeres seguintes e
trêmulos, que cozinharam em sua garganta por muito tempo antes de saírem
cuspidos.
–
Vim quitar uma dívida.
Dois
riscos se juntaram às muitas rugas da testa velha do comerciante, numa reação
àquela fala muito inesperada, até que a história, há muito tida como resolvida,
revisitasse suas lembranças enquanto era explicada numa severa economia de
palavras pelo homem à sua frente. Os riscos sumiram, o velho riu sincero como
há tempos não fazia e, tirando da boca o palito mastigado, balançou a cabeça e
disse que não: aquela dívida já estava paga.
Cerca
de trinta anos mais novo do que naquela tarde de chuviscos, quando as ruas
ainda eram de terra e quando ainda prometiam que a estrada São Paulo-Rio seria
alargada, seu Pascoal, num meio-dia de domingo, que é dia santo, como dizem os
mandamentos, não abriu o bazar (que já existia naqueles tempos, logo abaixo da
casa da família) e anunciou à mulher Maria e às três filhas que aquele seria um
bom dia para comer um ensopado da galinha velha que morava com uma companheira
no poleiro dos fundos da casa.
Moravam num
bairro residencial acolhedor, daqueles em que as pessoas se cumprimentam ao
abrir janelas, trocam doces caseiros em noites de festa e botam os filhos
pequenos para brincar juntos no quintal (que acabavam, quando adultos,
cumprimentando os antigos colegas de longas tardes com um aceno de cabeça e um
sorrisinho corrido: o destino das amizades precoces). A casa à sua direita era de
uma moça de meia-idade, Márcia, que a cada manhã dava bom-dias mais cansados
aos parapeitos vizinhos, e mãe de dois filhos de pai morto: morto porque Márcia
aprenderia, depois da ida sem volta do marido para sabe-se lá onde, a inventar
a morte das pessoas e a promover esquecimentos sem dor. Os filhos, Roberto e
Osmar, de oito e dez anos, sabiam com certeza que o pai estava bastante vivo,
obrigado, mas Márcia sabia do contrário com a mesma certeza. Do outro lado
morava o sargento Juvenal, de humores enrijecidos pela vida militar e ainda
mais por ter se aposentado sem conseguir ascender às patentes superiores, dono
de um pequeno terreno vazio ao lado esquerdo da família de Maria e Pascoal.
Morava logo depois do terreno de que era proprietário, num sobrado simples mas
sempre nos trinques. A filha mais velha do casal de comerciantes, com doze anos
na época em que a história aconteceu, gostava de especular o que aquele
sargento, que tão bem sabia se postar com imponência, fazia quando estava em casa,
pois a única coisa que comprava no bazar da família eram alguns centímetros de
fita de cetim. A menina adorava incomodar o sono noturno das irmãs mais novas,
que só podiam temer um homem que não se via esboçar sorriso, com histórias de
que ele usava a fita para presentear crianças, dizendo que iria amarrá-la no
pescoço das coitadas como um colarzinho, mas acabava por esganá-las sem dó.
– Então a
gente não deveria vender essas coisas pra ele – a caçula, astuta, retrucou, ao
que a mais velha respondeu que, se recusasse a venda, ele desconfiaria e faria
dela a próxima vitima. Mas ela mesmo achava que o sargento não sorria porque
não tinha dentes, e ele amarrava a fita no dedo indicador na hora de dormir,
para que, quando acordasse, lembrasse de botar as dentaduras para não passar
vergonha caso um ataque de riso o acometesse. (Maria, a mãe, numa noite, indo
fechar a janela do quarto, viu numa grande mesa de mogno o sargento Juvenal
trocando as velhas fitas de cetim das suas caras medalhas dos tempos militares
por fitas novas que comprava em sua loja, mas morreu com essa informação, pois
não é um fato que se guarde com muitas chaves na cabeça; mas sabia também que a
mulher do sargento o chamava de Juva, e essa manifestação de carinho tão banal
fez com que deixasse de vê-lo como um homem tão durão. Guardou esta informação
também.)
Acontece que
Maria e Pascoal há três anos ambicionavam em comprar o terreno do lado esquerdo
da casa, propriedade do sargento, para ampliar um pouco as capacidades do
bazar, que prosperava. Ter conseguido a quantia necessária para comprá-lo foi a
conquista da semana, e tal era o motivo para festejar o domingo com um ensopado
de frango.
– Pois pegue a
coitada enquanto afio a faca – Maria pediu, tirando da última gaveta o facão
que a havia feito aprender na marra queira-ou-não-queira que bicho não tem alma.
Pascoal foi
buscar. Voltou quase ao mesmo tempo que foi.
– A danada não
está lá.
– Tem duas. Pois pegue a outra.
–
Não tem mais.
Foram averiguar os arredores da casa.
Não poderiam ter ido muito longe: ontem mesmo estavam onde sempre estiveram
botando seus ovos. O galinheiro era cercado por um arame, pouco alto, é
verdade, mas suficiente pra não deixar as gatunas escaparem: galinha faz
alvoroço, mas não levanta voo, disso tinha certeza. Pascoal ficou pensando se
elas pressentiram a vinda do ensopado da morte e se conseguiram algum poder
extraordinário de fuga, desses que aparecem nos momentos de provação e
intempérie, mas depois que perguntou pras filhas, que brincavam saltitantes de
amarelinha no quintal com o menino Roberto e Osmar, filhos de pai morto, se
tinham eventualmente visto por aí duas galinhas perambulando, e depois de olhar
embaixo das camas, dentro dos armários e todo possível canto da casa e do
bazar, descartou de vez a ideia de que elas escaparam. Aquilo era
irremediavelmente um caso de ladrão de galinha.
– Podia ter
deixado a outra! Pra comemorar o dia em que comprássemos o terreno, ao menos.
O pai se
conformou de pronto, mas Maria, por sua vez, obstinou-se na busca; já ia mandar
os moleques, filhos de pai morto e da vizinha, direto pra casa, pois não era mais hora de brincadeira, mas o
menino, que conhecia a mãe das colegas de longas tardes, pressentiu o perigo e
já tinha partido para casa com o irmão. Mas, como suas raivas passavam tão
rápidas quanto chegavam, logo estavam todos jantando um ensopado de legumes que
cultivavam na horta dos fundos (que, no fim das contas, sempre recebera mais
atenção do que qualquer outro serviço de Pascoal, que era da opinião de que uma
pessoa que não tinha horta em casa não era gente).
Ao entardecer
da segunda-feira, dia seguinte ao sumiço das galinhas, Pascoal viu algo que
abalou as estruturas da certeza que tinha sobre a compra do terreno. Era fim do
expediente, as portas do bazar já tinham sido fechadas, Maria subira para
banhar as meninas. Pascoal baixava as portas da loja, que dava de frente para a
rua e dividia paredes com o terreno (que dividia paredes com a casa do
sargento), quando viu, na caçamba de lixo do velho militar, um monte de penas.
Parou. Olhou para os lados, a rua estava praticamente vazia, os comércios
fechados, as crianças encardidas de empinar pipa e pular amarelinha já estavam
em suas casas de banho tomado... e ele resolveu se aproximar, averiguar melhor
e ter certeza de que não era truque de seus olhos, ilusão de ótica ou golpe de
vista. Espichou o olho para dentro da caçamba e não havia dúvidas: uma porção
de penas da mesma cor das galinhas; o sargento as roubara, e o cheiro de
ensopado de frango era inegável àquela hora, mas jamais soube se, naquele
momento, seu nariz o estava enganando ou se alguém estava se empanturrando com
suas galinhas de fato.
Homem
ponderado que era, pensava duas vezes antes de agir. Imaginou-se indo até o
sargento tirar satisfações sobre aquelas penas todas e dizendo que,
coincidentemente, suas galinhas haviam desaparecido, de um modo bem irônico e desafiador.
Contudo, era do tipo que descartava essas ideias ao mesmo tempo que as formulava,
pois sabia que não teria coragem de peitá-lo daquela maneira, sendo o sargento
o homem que era, do tipo que não esboçava sorriso, e homem que não sorri só
pode não ter o menor escrúpulo. Sabia também que, se comentasse qualquer coisa
com Maria, que nunca apareceu em casa com desaforo, a mulher viraria uma leoa e
iria até a casa do vizinho com o facão de matar bicho e exigiria os frangos,
nem que os levasse vomitados de volta para o galinheiro – o que poderia ser um
perigo para ambos. Comprar o terreno já não o animava tanto quanto antes: se o
sargento, aposentado militar e consequentemente sem problemas financeiros,
roubava um parzinho de galinhas, nada garantia que os trâmites da compra se
dariam na legalidade com que costumava levar sua vida, ou que o sargento não
lhe passaria a perna de alguma forma. Entretanto, desistir da compra sem uma
boa explicação não satisfaria a mulher, então, decidiu: voltaria para casa
fingindo que aquelas penas na caçamba não tinham sido vistas, e fim.
Poucos dias
depois, ainda na mesma semana, o casal foi junto manifestar ao sargento o
desejo de comprar o terreno. Sabiam que a Jesuíta da Nova São Miguel também
estava deveras interessada, mas sabiam também que preferência se dá sempre pro
vizinho, e reclamaram ao sargento essa prioridade. Juvenal prioridade não dava,
mas dava desconto.
– Faço 180 pra
ela, 120 pra vocês.
Pascoal de
pronto só pode interpretar aquele desconto estonteante como um irremediável
peso na consciência pelo roubo das galinhas. Fecharam negócio com um aperto de
mãos e um olhar cúmplice de quem entende a negociação, que, para Pascoal, era
claramente mais que um sinal de preferência ao vizinho e sim um acerto de
contas, tácito para sempre porém muito bem selado.
“Caras, essas
galinhas, não?” é o que pensaria pelos próximos trinta anos, até aquela tarde
de chuviscos, em que as ruas já eram de asfalto e a estrada São Paulo-Rio mudara o nome para Avenida Marechal Tito e jamais seria alargada, quando o homem caminhou
para seu balcão para quitar uma dívida. O sargento Juvenal, Juva para a mulher,
e falecido há uns bons anos, era o culpado até as parcas palavras de Roberto,
filho de pai morto, quase a completar a quarta década de vida, explicarem que,
sim, o ladrão daquele par de galinhas era ele, porque a mãe Márcia, que
inventara muitas mortes até a sua própria, pedira pra ir catá-las na calada da
noite porque faltava comida na mesa; agora que podia, gostaria de pagar a
dívida, certamente uma quantia menor que o desconto concedido a Pascoal pelo
sargento, e de tirar o peso de trinta anos da consciência junto com as notas
que tirava do bolso. Pascoal recusou, obviamente, e Maria também, ao se achegar
na conversa dos dois, pois as dívidas dos famintos são do tipo que se quita ao
mesmo tempo que se contrai. Roberto insistiu.
– Coloca esse dinheiro aqui que eu jogo no meio da rua – Maria disse, sendo
aquela a maior verdade que diria na vida.
Se a quantia
foi parar no meio da rua ou não, não se sabe, ou quanto tempo durou aquela
conversa, mas o sargento descansou em paz finalmente (se é que militares têm
paz depois de mortos), Pascoal diria aos netos anos adiante que aquilo era
história de cinema e Roberto tirou enfim o repetido pedido de perdão de suas
rezas.